sexta-feira, fevereiro 24, 2006

Mas é carnaval, não me diga mais quem é você

Marcha de Carnaval

Na bifurcação, no fim da avenida, perdi meu bloco
E parado – entre dois caminhos – me vi apenas um
Apenas um com as circunstâncias que me acompanharam :
Oculos, sapatos, esperança e uma gaiola vazia
Apenas um, de vista a muitos, mas apenas um

Na bifurcação, no fim da avenida, parei cansado
E me vi só de braços dados com a mesma canção
Que me acompanhou nas guerras, nas glórias e nas angústias
Perdi meu bloco mas ainda estou com a mesma canção

E lançado à dúvida de dois caminhos (eu, meus óculos, sapatos e esperança)
Ficarei parado enquanto o bloco avança em um desses desvios
um ao largo de mim que não fui
Outro à margem do que fui – minha lembrança

terça-feira, fevereiro 07, 2006

As Tradições

Ao restaurante Leite





Valha-me Deus, as tradições !

Quedo caiado pelo amarelo do daguerrótipo
Como se não possuísse dantes outra cor
Dantes o azul morno que definiu minha infância
Dantes o vermelho do partido ao qual filiei minha juventude
Dantes isso que é espectro daquilo mas que não cheira a morfina
Mas resto “arrebalde” que é uma palavra antiga e que não se diz mais.

E ainda que eu tenha em mim a sede de domar coisa-nova
Vejo-me sentado à mesa reiteradamente posta
Mesura daquele garçon, que não se grafa garçom, e que serviu com a mesma mesura
ao meu avô.

Eu estou avizinhado por homens mortos –mas perpétuos
Suas histórias são contadas pelos seus bigodes e relógios de algibeira
Pelo talher de prata que um deixou cair ao pensar no tempo que não voltará
Mortos que me oferecem o charuto – e o charuto me perpetuará
( eu estarei morto)
Morto para o mundo que dura cinco segundos e que se refaz
Mundo paráfrase do mundo que havia antes
Mundo que o é por cinco segundos e que não será nunca mais

Valha –me Deus, as tradições !

Essa forma reiterada que congela o conteúdo
A mesa posta em ordem que é sub ordem universal
O terno, a gravata, o sorriso repetido
Até a desordem de nossas almas segue o mesmo ritual
E eu não estou velho, estou sempre
No hiato de mim-para-mim não cabem mais revoluções
Minha insígnia de guerra, que dantes foi o inconformismo
É hoje o suspiro: Valha-me Deus as tradições !

Eu estou encharcado pelo meu sobrenome
E quando me chamam, chamam meu ancestral
Do primeiro de mim, meu corpo é apenas um instrumento
Instrumento desse ser que é nomeado mas que nunca existiu

E quando disserem “Mussalem”, chamarão meu pai e meu avô
Até que se possa dizer o mesmo de mim, quando meu filho disser “já vou...”
Eu irei com ele, para ser a sombra em seu destino
E comigo irão, o menino, meu pai e meu avô

Eu serei perpétuo em um retrato na parede
Naquele restaurante em que se serviu ao meu avô
Servirá, o garçon, com a mesma mesura
E o daquerrótipo continuará a definir minha cor
O mundo se reparafraseará, lá fora, sendo outro mundo, outra vez
Aqui dentro a tradição conserva o mesmo mundo em nossas almas
Transformando-as em um painel de azulejo português.