quinta-feira, julho 12, 2012

Olhos Brancos







À Musa Tétis, a mais bela das Nereidas dos mares de Poseidon


José Dias sugeriu a Bentinho que reparasse os olhos de Capitu
Eram olhos de cigana, oblíqua e dissimulada

Isso se deu no Passeio Público
Isso foi no século dezenove

José Dias se salvou

Fosse hoje, essa observação literária poderia ter-lhe custado um processo
Pois os ciganos protestaram contra a inteireza da palavra
Contra a pluralidade de significados
É esse um tempo de homens que protestam
A 4ª Guerra Mundial no século vinte e um


O Ministério Público acatou o protesto dos ciganos
E mandou os dicionários se adequarem a esse novo tempo
Em que os homens não podem pensar por si mesmos



Errou o filósofo que disse que as palavras não morrem
O extermínio sub-reptício vem travestido de ética

E subtrai significados como um beijo na face do povo



Os dicionários se reinventam nessa guerra sem bombas
Os pianos tocam músicas previamente selecionadas
E um branco mais noite que a noite esfaqueia o silêncio

Que ficou nos olhos desinventados de Capitu

quarta-feira, julho 11, 2012

Viagem na Família


(Carlos Drummond de Andrade)


No deserto de Itabira
a sombra de meu pai
tomou-me pela mão
Tanto tempo perdido.
Porém  nada dizia.
Não era dia nem noite.
Suspiro? vôo de pássaro?
Porém nada dizia.

Longamente caminhamos.
Aqui havia uma casa.
A montanha era maior.
Tantos mortos amontoados,
o tempo roendo os mortos.
E nas casas em ruína,
desprezo, frio, umidade.
Porém nada dizia.

A rua que atravessava
a cavalo, de galope.
Seu relógio. Sua roupa.
Seus papéis de circunstância
Suas históriasde amor.
Há um abrir de baús
e de lembranças violentas.
Porém nada dizia.

No deserto de Itabira
as coisas voltam a existir,
irrespiráveis e súbitas.
O mercado de desejos
expõe seus tristes tesouros:
meu anseio de fugir;
mulheres nuas; remorso;
Porém nada dizia.

Pisando livros e cartas,
viajamos na família.
Casamentos; hipotecas;
os primos tuberculosos;
a tia louca; minha avó
traí­da com as escravas,
rangendo sedas na alcova.
Porém nada dizia.

Que cruel, obscuro instinto
movia sua mão pálida
sutilmente nos empurrando
pelo tempo e pelos lugares
defendidos?
Olhei-o nos olhos brancos.
Gritei-lhe: Fala! Minha voz
vibrou no ar um momento,
bateu nas pedras. A sombra
prosseguia devagar
aquela viagem patética
através do reino perdido.
Porém nada dizia.

Vi mágoa, incompreensão
e mais de uma velha revolta
a dividir-nos no escuro.
A mão que não quis beijar,
o prato que me negaram,
recusa em pedir perdão.
Orgulho. Terror noturno.
Porém nada dizia.

Fala fala fala fala.
Puxava pelo casaco
que se desfazia em barro.
Pelas mãos, pelas botinas
prendia a sombra severa
e a sombra se desprendia
sem fuga nem reação
Porém ficava calada.
E eram distintos silêncios
que se entranhavam no seu.

Era meu avô já surdo
querendo escutar as aves
pintadas no céu da igreja;
a minha falta de amigos;
a sua falta de beijos;
eram nossas difícies vidas
e uma grande separação
na pequena área do quarto.

A pequena área da vida
me aperta contra seu vulto,
e nesse abraço diáfano
é como se eu me queimasse
todo, de pungente amor.
só hoje nos conhecermos!
Óculos, memórias, retratos
fluem no rio do sangue.
As águas já não permitem
distinguir seu rosto longe,
para lá de setenta anos...

Senti que me perdoava
porém nada dizia.

As águas cobrem o bigode,
a família, Itabira, tudo.