segunda-feira, abril 30, 2007

Tigre, Tigre



Tiger, tiger, burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Dare frame thy fearful symmetry?
(W. Blake)



Maria Eduarda me puxa pela mão e me mostra o segredinho de tantos dias: um tigre branco. Mas um tigre, Maria Eduarda? É, um tigre, papai...Tento explicar à Maria Eduarda que tigres são criaturas selvagens, ou que, do ponto de vista do romantismo inglês, os tigres são a perfeita representação da força da natureza, e, portanto, não seriam as criaturas mais plausíveis para caminhar pela sala de jantar. Mas qualquer argumento estético ou biológico fenece perante os olhinhos de retrós de Maria Eduarda que proclama: ele é tão bonitinho.

Devo concordar que o tigre branco é realmente de um apuro estético extremamente prazeroso para qualquer mortal, ainda mais para uma criança de dois anos de idade que passou suas tardes olhando um livrinho de fotos de animais. Poder-se-ia argumentar que o tigre branco é uma criatura inverossímil, diante da incapacidade da babá de enxerga-lo, ou do descaso da mãe que não compreende a importância de um tigre branco, principalmente se confrontado com coisas mais tangíveis como a falta de leite em pó, ou o barulho insistente da geladeira.

Mas quem sou eu, tão liberto da verdade aristotélica, para não dar crédito ao tigre branco de Maria Eduarda que passeia pela sala de estar e olha curioso para a televisão ligada. Ele acompanhará minha filha pela vida afora, deglutirá, selvagem, cadernos de lição, livros de matemática, o menino chato que grudou um chiclete em seu cabelo.

Um dia, quando eu não mais o enxergar, o tigre virá sorrateiro, após a noite mal dormida em que proibi Maria Eduarda de ir a um show, e me devorará em silêncio sem que eu perceba meus braços, minhas pernas e meus olhos indo embora da existência sonhada.

E nas florestas da noite, Maria Eduarda terá crescido.

sexta-feira, abril 20, 2007


Galega: sou muito mais você do que todas essas poesias, filosofias, pensamentos
sou muito mais você do que Habermas, Dworkin, Apel
sou mais você do que Drummond, Pessoa, Yeats
mais você do que qualquer explicação da moral pós-transcendental
do que a guinada linguistica da filosofina analítica
que a palavra
q...
...

terça-feira, abril 17, 2007

A TERCEIRA GUERRA MUNDIAL

Muitos perguntavam para o Sr. David porque ele insistia morar perto da Kurfürstendamm; O aluguel do imóvel é caro e não existem as facilidades requisitadas para alguém daquela idade.
O que o Sr. David não confessava é que havia certo prazer em ser vizinho de um homem como Günter Grass; Não que o Sr. David fosse amigo ou coisa que o valha daquele senhor sempre acompanhado pelo cachimbo; sequer havia lido suas obras e seu teatro do absurdo. Só gostava de pensar que, na sua solidão, estava acompanhado de uma mente que havia ajudado a construir aquele tempo.
Entre eles havia o espaço de um cordial “bom dia”. E essa possibilidade de uma conversa maior, estancada pelos afazeres de ambos, era o suficiente para o gáudio do Sr. David.
As confissões de Günter Grass atingiram, de um modo ou outro, toda a classe intelectual alemã. Mas não tenho dúvidas que o Sr. David sentiu de modo desproporcional a entrevista concedida ao 'Frankfurter Allgemeine Zeitung', onde o Sr. Grass afirmou que foi voluntário ao servir a tropa de elite nazista.
No dia seguinte à publicação, o Prêmio Nobel de Literatura de 1999 encontrou o Sr. David na porta de casa e repetiu o rito do “bom dia”. Não houve resposta. Naquele mesmo mês, não havia mais vizinhança.

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Foi uma surpresa para Lindonéia encontrar Dona Clara na audiência pública convocada pelo Ministério Público. Lindonéia sempre reputou Dona Clara como uma pessoa de bem e fazia questão de levar suas amigas para apreciar o acarajé vendido na porta da sua Igreja-Assembléia.
Estando Dona Clara naquela audiência, ficou claro para Lindonéia que a vendedora de acarajé era íntima do terreiro de Pai Adão e, portanto, também responsável pelos cantos que invadiam e violentavam os louvores ao Deus único.
A Promotora não sabia como resolver as divergências de uma e de outra denominação religiosa. Não se sabia qual culto havia se estabelecido primeiro naquela circunscrição; os livros, as leis, a Constituição não ofereciam melhor resposta do que um oráculo de previsões vagas e imprecisas.
Ao sugerir o respeito mútuo e a compreensão às diferenças, a Promotora viu, pelo rabo do olho, Lindonéia passar na frente de Dona Clara e cuspir no chão, demarcando o limite entre um e outro deus.

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Eu sinceramente havia esquecido o motivo daquela briga. Mas não ia abrir mão daquele silêncio. Havia um motivo ainda que esquecido entre a xícara da noite anterior e o marcador de livro lançado no chão.
Não olhei para ela. Coloquei a camisa, liguei o ar condicionado no máximo e deitei com as minhas costas voltadas para a coluna arqueada dela, que tecia uma muda conversa com o espaço de ar entre nós.
Não pedi desculpas. Não esperei desculpas dela. Eu segurava aquele silêncio como troféu de uma corrida em que não havia certeza de vencedor.
Fechei os meus olhos e quase pude ouvir as sirenes do bombardeio antiaéreo invadindo a cidade.

terça-feira, abril 10, 2007



Atrás da casa a porta

Atrás da porta o sofá

Atrás do sofá a sombra

Atrás da sombra a sombra

Um mistério sempre por detrás do outro

sorrateiro, silencioso e imperceptível

como esse que se é e que se desencarna de nós

segunda-feira, abril 02, 2007

TOURADA

Isso, que me repudia, o matrimônio
Não entre a carne e a carne, mas a elegia
entre a carne e o aço, eu diria,
entre o touro e o braço à luz do dia

Isso, que me repudia, ou deveria,
causar ânsia de vômitos ou apatia
Dantes me causa um assombro ou uma alegria
De ver em tal casamento a fidalguia
da união carne a carne à luz do dia

O touro, este esposo em fúria, de si avança
Para abraçar sua morte, febril se lança
Que o casamento na arena não guarda a vida
Mas une em antítese a carne a sua própria ferida

Que a arena é da vida a anti-vida, da parte a contra-parte
Onde há a união, mora o aparte
Onde nasce o homem, Deus encontra a morte
Onde encontras teu executor, eis o teu consorte