terça-feira, junho 26, 2012

A Febre do Rato




Cláudio Assis faz o melhor cinema do Brasil. Mas isso não quer dizer que o filme - objeto da presente crítica - seja excelente. Quer dizer que a média nacional está bem abaixo do que se espera de uma produção cinematográfica de um país em franco desenvolvimento e que rompeu - graças a Deus – com a Embrafilme. A Argentina, com todas as suas crises, está a anos luz das nossas salas escuras, como ocorre com a literatura e com as ciências humanas.

Mas a “A Febre do Rato” é um filme que justifica a esperança em um cinema melhor no Brasil. Rema – via Capibaribe – na contramão dos roteiros pasteurizados e lançados pela Globo Filmes. Aliás, acredito que os tentáculos da Globo sobre a produção cinematográfica no Brasil é parcialmente responsável pelos péssimos filmes nacionais que sofrem de uma esquizofrenia crônica: “sou um filme ou um capítulo de uma série de TV?” “A Febre do Rato” é cinema deliciosamente marginal, é feito para as massas, mas sem a preocupação de agradar as massas, de gerar lucro, de render sequências, é arte, é cinema.

Muitos jornalistas criticaram a opção estética pela fotografia em preto e branco. Eu achei oportuna. O preto e branco nos iguala, aproxima a miséria dos nossos olhos, sem as distrações que as cores (amarela e roxa) podem ocasionar. O Recife e sua gente tornam-se o amálgama indissociável de estruturas de barro e carne e já não podemos distinguir onde começa o tijolo e termina o pênis.

  A vida do poeta marginal é o mote do filme, mas ela é apenas o visgo (de saliva, de esperma, urina e sangue) que une as histórias paralelas de um Recife que se dá da favela para o espaço público. O que há de comum em cada uma das estórias que vão se fundir na celebração final é que seus protagonistas vivem em um estado de liberdade cujo rompimento com as convenções da cidade se dá a partir do corpo. O sexo com sexagenárias, a orgia na cama, a relação com a transexualidade, o não ao convite do prazer pelo prazer: são manifestos pela liberdade do sujeito que será reprimida em um ato público pela sentinela do convencional.

 “A Febre do Rato” tem suas falhas, que – em minha opinião – remontam o primeiro filme do Cláudio Assis, “Amarelo Manga”. Os ícones apresentados pelo roteiro são fáceis, muitas vezes caricatos, possuem a mesma raiz (pouco) criativa da evangélica reprimida retratada na película primogênita ou do agroboy violento e com tendências homossexuais de “Baixio das Bestas”. A vontade de chocar de Cláudio Assis se exacerba em determinados momentos do filme e a gratuidade de determinadas imagens acaba por soterrar a sutileza inteligente que causa muito mais espanto e incômodo do que a púbis exposta e já comungada por nós – plateia – no nosso dia a dia.

  A metalinguagem e o discurso para câmera me incomodam. Mas aí já é uma opção estética dos realizadores do filme, e não necessariamente uma falha.

A despeito dessas janelas que se abrem para a crítica, “A Febre do Rato” é um filme que deve ser visto, amado, odiado, consumido, vomitado, escarrado, lambido, fodido, acariciado, vivido. Vivido com a mesma intensidade que o personagem Zizo viveu seus poemas, sua cidade, seus desejos, seu fim.

segunda-feira, junho 25, 2012

Herança







Eu tenho duas mãos, mas nelas não levo o sentimento do Mundo
Na mão direita levo uma trena, na esquerda uma arma:


A trena me foi dada pelo leve suspiro da minha mãe
É com ela que meço minhas escolhas, o centímetro da minha passada
Quando me ofertam coisas sem medidas, e o tamanho do dia é quase infinito
Com a paciência do arquiteto divido a carne, o beijo escondido sob as causas remotas
(Pois tudo na vida tem o seu centímetro)
Todo joio é igual ao trigo quando nele vemos apenas uma polegada
A trena na mão é a lembrança perene
Que o todo de nós é apenas uma mentira aos pedaços contada


A arma é o quinhão da ausência do meu pai
Mas ela não atira, está calada
Há muito que não conhece pólvora, caça,
Perdeu-se de seus cadáveres catequizados pela bala
Com ela eu estanco frente ao espelho
Enquanto eu vigio a paz, inominada
A arma na mão é a perpétua memória
Que a morte virá de dentro para fora, sem me dizer nada