sábado, dezembro 31, 2011

Ano Novo 3.1

Não, não adianta pular as ondas do mar
Guardar sementes de romã, segredar dentro da carteira
Os caroços da uva verde que você destronou com volúpia
Por entre os dentes sedentos de um futuro bom
Não vai resolver esta roupa branca, estendida ao sabor das espumas
O dourado, o vermelho, o azul traduzidos em desejo de algo
A se mostrar sem nitidez no horizonte messiânico
Nada disso trará a felicidade nesse ano que virá
Você precisa da tristeza
Você precisa dela a descobrir as camadas das tuas retinas
Então é melhor se preparar para chorar


Talvez você se case, talvez perca um grande amor
Quem sabe aquela promoção, quiçá sentirá fome
Mas para além de todas as tentativas de reter o futuro
Na palma da sua mão
Haverá uma noite neste ano indefinido
Uma noite apenas, em que a lua, silenciosamente, invadirá o seu repouso
E brilhará lindamente no seu quarto enquanto você dorme e sorri

quinta-feira, dezembro 22, 2011

Tombamento e Permanência




Se a mim fosse dado escolher um poder, dentre os poucos possíveis aos homens, escolheria o poder de tombar. Sem processo administrativo, sem as burocracias das adequações históricas, eu salvaria da finitude do tempo aquilo que eu penso amar. Tombaria as árvores imensas do quintal da minha avó, tombaria os nomes de rua, do Recife que quase virou pó. Não o Recife das grandes revoluções, das Igrejas seculares, dos casarões sem fim. Estes já são tombados, já foram, pelo Governador, resguardados; e, de certo modo, eu os conservo em mim. Eu tombaria o Recife das pequenas revoluções: uma mercearia antiga, a padaria da esquina, o vendedor de doces desfilando seus bordões. A Brasília azul do meu pai jamais seria vendida, eu desfilaria com ela aos domingos desafiando com sorrisos o tempo das coisas idas.


Eu tombaria o muro de uma casa, onde se deu um primeiro amor. Os anos em que o Sport, sem muitas dificuldades, consagrou-se vencedor. Não haveria necessidade de decreto, de publicação no diário oficial. De parecer dos arquitetos, dos historiadores, de adequação ao fato social. Bastava ser agradável aos sentidos e eu assinaria o ato. Imunizaria a memória da cegueira branca dos homens e o capitalismo que pagasse o pato.


Ninguém construiria arranha-céu onde sorriu o meu avô, na frente do Edifício Caiçara, que por força das retinas e das vontades pequeninas, da força demolidora dos homens se salvou. E defronte ao mar infinito, no lugar em que o tempo é mais bonito, o Edifício Caiçara vai ficando. Graças a união das saudades partidas, um castelo foi salvo, ladeado por outras coisas que, pela cegueira dos homens, vão se perdendo. Quisera eu ter o poder de tombar o mundo e dissipar essa ausência que, lentamente, vai me doendo.


Eu proibiria, sem decretos, tudo que amamos fenecer: pois se é do sonho dos homens que uma cidade se inventa, é pela memória do povo e pela saudade que aumenta que ela vai permanecer.

quarta-feira, dezembro 21, 2011

Relicário





A família Aires de Souza possuía por tradição imemorial – segundo contavam as crônicas genealógicas das famílias do século XIX, hoje arregimentadas no arquivo público – a retirada proposital de uma víscera do corpo para escondê-la encaixotada e além da própria morte ou vida. Esse estranho hábito ensinado por um pai negro, quando a família ainda residia em Lisboa, de acordo com fontes infidedignas, estava ligado à ascendência judia dos Aires de Souza; a um desejo inafastável de guardar o que lhe era mais precioso.

O avô de Gertrudes possuía em uma caixa de madeira, seu estômago. E isso lhe permitia os ganhos com os negócios de açúcar, bem como a falta de qualquer pudor ao chicotear um negro que não se submetesse ao capital branco e doce do Sinhô. Era no estômago que dormia a piedade.

Gertrudes ouvia essas estórias quando pequena. Aos poucos as estórias foram silenciando. O marido foi silenciando. Os filhos foram silenciando. Os netos foram silenciando. E todas as vozes que ouvia em casa eram dirigidas para algo além, nunca para Gerturdes.


Justamente pelo monopólio do silêncio, era tão fácil entrar no quarto desapercebida. Não havia perguntas inconvenientes, nem curiosidades a serem satisfeitas a partir de estórias do passado. Essa solidão resignada era a chave do seu tesouro, que estava escondida atrás do quadro do seu avô. A ansiedade que sentia era um medo do mundo. De que o mundo, de repente, invadisse o seu quarto, com todas aquelas medicinas, bancários, previdências e assaltasse o seu santuário, com mãos multiplicadas a contaminar a fragilidade do que lhe era mais caro nessa vida.


Por isso o exercício eterno de sentinela a checar o cofre atrás do quadro. E dentro do cofre, o conteúdo de sua vida: caixinha adornada a homenagear a riqueza do que estava depositado. Um relicário, igual aos que estão depositados nas paredes de uma das salas da Catedral de Nossa Senhora com os Pés na Lua, em Madrid.

Seu, tão seu. Porque dentro do relicário estava silencioso, pétreo e murcho o seu coração. Retirado conforme as receitas ancestrais do pai negro, em Lisboa.

Placa de prata com nome gravado: Gertrudes; às vezes, o coração parecia chamar querendo o consolo do peito vazio. Mas o coração permaneceria na caixa até o fim dos dias de Gertrudes e talvez até os dias posteriores. Conservado não por formol, ou química semelhante, mas pela ausência do silêncio, das medicinas, dos bancários e das previdências; conservado para se ver livre das maldades e tentações desse mundo, como um corpo incorrupto de um santo que permanece para além dos vermes.

sábado, dezembro 03, 2011

No peito de um homem feliz bate um jambeiro



Eu tenho o que preciso entre os meus braços
Eu vi o sol nascer no seu olhar
Eu levo a vida construindo laços
Que nem a morte pode desatar

Eu nunca fui o nome de avenida
Mas sinto que sou dono deste mar
A inspiração que trago em vida
Eu colho como fruta no pomar

No peito de um homem feliz bate um jambeiro
Bate um jambeiro
Bate um jambeiro
No peito de um homem feliz bate um jambeiro
Bate um jambeiro a florescer no seu quintal

Quem leva dessa vida o sal da noite
Acorda com o açúcar da manhã
Eu piso com meus pés o chão do hoje
Sem me importar com o abismo do amanhã

Ó meu grande amor, veja a roseira
Rompendo o asfalto para nos saudar
Quem põe a fé na vã beleza
Não vê a verdadeira flor brotar

No peito de um homem feliz bate um jambeiro
Bate um jambeiro
Bate um jambeiro
No peito de um homem feliz bate um jambeiro
Bate um jambeiro a florescer no seu quintal