terça-feira, janeiro 30, 2007

"Bendita seja a morte que é o fim de todos os milagres"

M. Bandeira

quarta-feira, janeiro 24, 2007

Os poemas de Francisco me deixam melancólico, porque traduzem com lâmina exposta a melancolia que habita nele. Esse é o móvel do poema, transcender o particular e alçar a dor alheia sem se dar conta dela. O poema abaixo lembra um poema que eu fiz em circunstâncias que acredito semelhantes as que levaram Francisco ao cinzel tão contundente. E isso sem que houvesse comunicação explícita, apenas porque ele virou letras.

Por descuido cruzei a fronteira.
Vivo estrangeiro em minha casa.

Bagagem revistada.
Íntimo exposto.
Parte impedida de prosseguir.

O peso dos rancores.
As múltiplas máscaras.
Memórias de amor.

Necessário o catálogo da vida.
O inventário de cada item a abandonar.

E lá se vão pedras e mais pedras.
Passos e mais passos.
Estórias.

E lá se vai insensatez. E espera.
E lá se vai tristeza.

No fim, apenas o indispensável.
O retrato do menino de cabelo de milho,
com sua família centenária.

Punhado de lembranças.
Organizadas por épocas.
Convergentes.

Bagagem revisitada.
Caminho exposto.
Parte regressa, parte prossegue.

O estrangeiro de mim se despede.

Fco.

quarta-feira, janeiro 17, 2007

O que é o mundo, perguntou-me Bia


O mundo, Bia, é uma porção de palavras a serem domadas.

Eu te dou algumas delas, que fazem parte do meu mundo: desasossego, candelabro, tramela, compaixão, engenho, garrinho, pálpebra, despojo, salmo, constitucional, maravilhado, bilha, determinação.

quinta-feira, janeiro 11, 2007

Canção do Exílio, 07-08-1969


Se teus olhos estivessem aqui, Maria, veriam que minhas mãos enfim. Despertaram-se das algemas, e hoje sorriem para mim. Mas eu não rio para ninguém, Maria. Decerto por causa do frio.

Um frio que dá aqui dentro, nas cordilheiras dos meus rins. Que começa cá no Chile e sobe para o vidro dos olhos. Procura, procura e nada. Nem Maria, nem consolo, nem diabos, nem querubins. Maria, se você pudesse, ver as minhas mãos libertas, e deixa-las presas em Maria, lágrimas não haveria, nem nos meus olhos nem nos de ninguém. E as flores não morreriam, Maria, e o inverno não mataria, Maria, quem a gente quer bem. Meu passaporte seria a tua palavra. Dirias o que sabes de mim. E falarias de Maria, dos meus pecados, dos meus querubins. E isso me bastaria, não precisava de mãos libertas que hoje despertam enfim.

Maria, se você pudesse ver Santiago do Chile. Teus olhos procurariam os porquês do sabiá. Que não há garrafada de feira nem roda de se cantar. Segurarias meus dedos, com medo de avançar, dentro dessa língua-palato, Maria, e eu iria te acalmar. Contava estórias de sangue, de um tempo que o mar levou. Em que eu vencia bicho grande, Maria, e liberdade ao vencedor. Depois te ensinava a dar cada passo nesta terra estrangeira, pra gente se perder na gente, mas mantendo a alma brasileira. Faríamos feijoada quando chovesse, Maria, e chamaríamos os nossos pares, esvaziaríamos as revoluções, os quintais dos nossos lares, para relembrar que Chico, Maria, lançou um novo LP. Que em Dezembro chega de contrabando e a gente tentando conter, o deslumbramento perante a palavra, Maria, o choro equivocado, Maria, a dor atravessada, Maria, tudo que eu sinto hoje, Maria, e hoje não há você.

Se teus olhos estivessem aqui, Maria, veriam que minhas mãos enfim. Despertaram das algemas. E hoje sorriem para mim. Mas para quê mãos libertas, Maria, se tu não estás aqui? De que me vale um país livre, sem tua boca para me trancar? Meus olhos já se esqueceram dos porquês do sabiá.


A carta de Augusto Carneiro nunca foi enviada à Maria, sua noiva que ficou em Recife, no ano de 1969. Augusto morreu de câncer no Chile em Outubro de 1972. Maria se casou com Hermano Souza Santos, hoje captador de recursos na Fundação de Cultura da Prefeitura da Cidade do Recife. O amigo chileno de Augusto Carneiro, Juan Remoz, herdou seus pertences pessoais e seu livro nunca terminado, e publicou a carta transcrita acima no “Diario de la Nación” em 08/07/1982. Os leitores reclamaram que não houve tradução para o espanhol.

quarta-feira, janeiro 10, 2007

Boca

Que se por um lado, a felicitação de estar nos Brasis, por outro, a dor de estar longe da Bahia. Mas as terras de Pernambuco iam de ser iguais, diziam. Risonha ao cetim e amarga à crítica. Gregório chegou onde o Beberibe e o Capibaribe se juntam para formar o Oceano Atlântico. E o povo já conhecia a fama que lhe valeu a alcunha. Por isso, o olhar de soslaio. As damas não olhavam nos seus olhos, por certo advertidas pela sociedade, do pecado que estariam consubstanciando a partir da cruzadela de olhares.

As putas tampouco lhe davam às vezes, advertidas por certo da enorme plausibilidade de serem transformadas em personagem de poemas escandalosos. De mais a mais, o Governo da Província era de tal modo corrupto, que a Metrópole estava a quinhentos mares de distância, como se o abismo geográfico fosse relativo para cada Governo de Capitania.

Mas o que fazer, se pela língua ferina havia sido degredado? E por não escrever, sentiu-se tão estrangeiro, que percebeu o que era claro diante de cada passo dado em falso: o degredo estava em não sibilar através da pena. Que não existe outra pátria para o homem senão o homem que se é e se compraz em o ser. E farto daquela merda toda, inaugurou a cidade de Recife:

Por entre o Beberibe, e o Oceano
Em uma areia sáfia, e lagadiça
Jaz o Recife povoação mestiça,
Que o Belga edificou ímpio tirano.

O Povo é pouco, e muito pouco urbano,
Que vive à mercê de uma linguiça,
Unha de velha insípida enfermiça,
E camarões de charco em todo o ano.

As Damas cortesãs, e por rasgadas
Olhas podridas, são, e pestilências,
Elas com purgações, nunca purgadas.

Que estava farto daquela cidade. Aumentaram a passagem do ônibus e decerto alguém ganharia com aquilo. Havia sido reprovado no vestibular. Era socialista. Anarquista. Ista, ista, ista. Qualquer coisa assim. As mulheres eram todas putas ( e dele dir-se-ia machista), o país não ia para canto algum (e dele dir-se-ia pessimista), minha mãe vai me matar (e dele dir-se-ia fatalista).
Foi quando descobriu uma revolta na Conde da Boa Vista. Revolta popular como acontecia nos livros de história. Contra o aumento da passagem de ônibus. Rumou para lá, e deixou-se pequeno na multidão que crescia. Um brado que crescia em si, contra o aumento, contra as putas, contra alguém que ganhava, contra o vestibular. O ônibus azul era tudo isso. E um ímpeto ancestral que vinha não se sabe da onde, talvez de mil e seiscentos, transformou a mão em pedra, a pedra em arma, o ônibus em alvo. Purgações nunca purgadas. O soco do policial foi na cabeça, e a língua sibilou contra a farda: - Enfia esse cacetete no cu, polícia filha duma puta.

A turba se evadia.

O policial ficou sem reação, pelas palavras gritadas escandalosas e inesquecíveis como se tivessem saído do inferno.

quarta-feira, janeiro 03, 2007

Colo, culto, cultus

Vejo com certa preocupação a indicação de Ariano Suassuna para a pasta da cultura do Governo do Estado de Pernambuco. É de estranhamento essa postura de general que não bota a mão na batalha, mas fica ao longe lançando diretrizes sobre o campo de guerra. Não quer a burocracia, quer linhas gerais. O grande problema do suporte à cultura é a burocracia. Ariano Suassuna tem entrado em choque com algumas das idéias mais interessantes que permearam a cultura pernambucana; Seu confete é em si mesmo, no movimento armorial e nos seus seguidores. Qualquer estética que fuja do padrão do popular/erudito, baseado na junção do medievo ocidental com a cultura da pedra, para ele é sub-cultura, quando muito.
É contra a colonização da cultura, e parece ignorar que culto, cultura e colonização partem da mesma raiz etimológica latina, e que há uma violência necessária na renovação cultural. A exclusão de movimentos como o que se convencionou a chamar de "mangue-beat", do som periférico do rap e de outras formas de expressão cultural surgidas a partir de uma dialética com o mundo (e com os Estados Unidos, porque não dizer...) possui um motor ideológico que não se irmana com uma política pública voltada para a valorização da cultura. Mas esse é o Ariano Suassuna das idéias. Será que o homem público, o gestor da res publica, vai abstrair os pré-conceitos e transcender as exclusões baseadas no seu quixotismo tão engraçado se não levado a sério?

terça-feira, janeiro 02, 2007



Expectativa de ouvir o Cê de Caetano. Confesso que havia lido algumas coisas antes da audição, o que só aumentava minha expectativa de adentrar em um universo de contestação, que é próprio de Caetano Veloso, e que venho acompanhando com uma certa delícia, desde quando ouvi - pela primeira vez, e tardiamente - o primeiro disco contemporâneo à aquisição, Circuladô (1992).
Caetano foi o responsável pela minha frustração de querer ser músico. Por isso, sempre haverá em mim uma simpatia por ele, o que me impede de escrever algo sobre o novo disco de forma imparcial. Acredito, todavia, que ninguém é imparcial quando fala de Caetano. Ninguém é imune a ele, para o bem ou para o mal.

E falo "mal" porque longe de ser uma unanimidade, como sói ocorrer com Chico Buarque (seu ser antagônico no imaginário do público brasileiro), Caetano é um dos compositores (e, sim, direi pensadores da cultura brasilera) que mais tem recebido tapas na cara dada à tapas. A geração imediatamente posterior à minha tem em Caetano um inimigo do novo, da cultura produzida no Brasil após o ocaso do que se chamava de "MPB". Por isso, Caetano é hoje o mais indie dos indies do Brasil . Ele é independente dos modismos que assolam a música, porque muito do que ele fizer será odiado pelo nicho consumidor do pop que ele mesmo ajudou a trazer para a cultura do país.
E é pelo fato de Caetano ser um índio-indie (perca o texto, mas não perca a piada) e assim ser taxado pelo próprio David Byrne que o Cê se torna um objeto delicioso para uma análise de blog.

Caetano se juntou com três meninos. A primeira impressão que se tem do disco é que não houve nenhuma reformulação no jeito de compor ou na estrutura linguística que é usual nas suas composições ("totais", "fatais" - utilizadas com ênfase em Rocks, típicas aliterações como o"Ganesh na coxa" na mesma música ou em "Um Sonho", o tema da absorção do negro da sociedade que foi um dos móveis de "Noites do Norte" disco autoral anterior), mas uma embalagem (não quero usar esse termo...) "antenada" com a música produzida no final da década de 80 pelas bandas que preparam o contexto do movimento independente que assola, atualmente, a cultura de massas. Assim, ecos do REM (principalmente do "New Adventures in Hi-Fi), do Pixies emolduram músicas bastante caetanas, que logo serão reconhecidas por aqueles que militam na obra do agora "Senhorito Veloso".

A segunda impressão tem ligação com o adjetivo lançado na última frase. Caetano repete um padrão que eu já havia observado em "Bicho Solto" do Djavan. Solteiro, pós-Paulinha, Caetano parece buscar o prazer do sexo pelo sexo, do amor adolescente-solar, sem coração e com muita mucosa. Esse "estado de coisas" teria levado à escolha do rock cru e bruto como moldura das suas canções? Ou houve uma escolha racional desse tema a partir da eleição do rock como moldura ainda vazia? Sem respostas para o paradoxo Tostines.

A terceira impressão tem ligações com o roxo da capa, cor que o próprio Caetano havia utilizado para a capa de "Uns". O roxo é ligado tradicionalmente à masculinidade e ao prazer, ou à metáfora da cor da pele mais escura. Tenho em mim que Caetano usou o roxo por ambas significações. As letras das músicas de "Deusa Urbana" e "Outro" sopram nos meus ouvidos essas impressões.

Assim, temos a tríade que Caetano nos imprime: rock-sexo-roxo. Um projeto na contra-mão das expectativas que não deveria nos surpreender vindo de Caetano Veloso, homem-velho-novo-homem que sempre se utilizou do inesperado para se lançar no mundo. Sempre esperamos o inesperado de Caetano Veloso; e isso basta para que ouçamos com atenção a Cê e reconheçamos Caetano quando ele passar por nós.

Feliz Ano Novo

Enfant Tèrrible


Esse ano-menino
me roubou um beijo
abriu a porta da geladeira
para ver o que lá havia
Desdenhou do que eu havia escrito:
“Está tudo velho”
e soprou um rock em meus ouvidos

Esse ano-menino
passou a mão em meus cabelos
me chamou de pai, de tio, de avô
Em meu colo chorou
o choro dos que nascem para o mundo
e que deixam a vida inflamar os pulmões

Esse ano-menino
dormiu cansado no sofá da sala
ainda do primeiro dia do ano
Aguardando que eu vá mima-lo,
contar-lhe histórias do futuro
para que ele possa se sonhar um ano bom