sábado, dezembro 29, 2007

2008

Eu vejo uma grande mesa, comprida de firmes tábuas
É hora da ceia e sempre foi a hora da ceia
Não há nenhuma solenidade, nenhuma forma prévia
Apenas os diálogos vizinhos que excluem tudo de si, menos o diálogo
Eu vejo minha irmã
Eu vejo minha esposa
As crianças correm sem nada que as façam mover
Maria Eduarda, Rafael, Luana, Gabriel, Írio, Lucas, Beatriz:
Novos apóstolos de nenhum Mestre
Eu vejo minha esposa e o seu sorriso enche o meu prato
As mãos pensas do meu pai
O cansaço sublime de minha mãe
Eu grito por Gustavo, por Sandro, por Gabriel
Por Giorgio, por Mário, por Adauto
Por Filipe, por Carlos Henrique, por Rodrigo
Por Írio, por Márcio, por André
Eu parto o pão de Aline, de Vera, de Mariana
De Edgard
Os pés de Maria Juciane, as mãos de Renata
A ausência do meu avô
Em uma grande mesa, comprida de firmes tábuas
E na cabeceira o infinito
Quase se deixando entrever

quarta-feira, dezembro 19, 2007


Você vale ouro, todo o meu tesouro,
Tão formosa da cabeça aos pés,
Vou lhe amando, lhe adorando,
Digo mais uma vez,
Agradeço à Deus, por que lhe fez.

Ô, coisinha tão bonitinha do pai,
Ô, coisinha tão bonitinha do pai,
Ô, coisinha tão bonitinha do pai,
Ô, coisinha tão bonitinha do pai.
Charmosa, tão dengosa,
Que só me deixa prosa,
Tesouro, vale ouro,
Agradeço à Deus, por que lhe fez...

Ô, coisinha tão bonitinha do pai,
Ô, coisinha tão bonitinha do pai,
Ô, coisinha tão bonitinha do pai,
Ô, coisinha tão bonitinha do pai.
(Jorge Aragão)

sábado, dezembro 01, 2007

nós, por exemplo


E nos rincões da gente
Lá onde o Pai de Fátima reina entre o gado
Na inexistência dos bancos, das avenidas em dias de segunda-feira
O silêncio absoluto do umbu me conta uma estória
do amor entre um homem e sua filha

terça-feira, novembro 27, 2007

Nós, Gatos

(para Mari, em memória de Pretzel, a quem eu nomeei)

Eu pensava que, como as letras e o ouro,
os gatos não morriam nunca
que eram um mistério para além da vida
que eram da mesma matéria dos afagos maternos
que eram derivados dos genes dos unicórnios
e encantavam-se no não-ver das coisas, assim que ficássemos adultos

Mas um dia Deus viajou para outros homens
e o mundo ficou de terra, de água e de fogo
de coisas que podiam ser explicadas
e por serem explicadas simplesmente morriam

E o gato virou um pequeno felino
com retinas, músculos, cérebro e estômago
saliva, fúria e dor intensa
o gato virou nosso irmão

E pudemos, pela primeira vez,
abraçar o gato e desejar-lhe o melhor
afagar o gato e beijar-lhe a fronte
amar o gato e saber-lhe finito
deixa-lo partir, para que possamos continuar

domingo, outubro 21, 2007


Referências (para Maria Eduarda)


Vamos começar de onde minha memória mais antiga começa: do meu medo.

Naquela esquina fica o colégio Nossa Senhora do Carmo, eu tinha medo da santa que fica no frontispício e fechava os olhos toda vez que passava por ela. Ali mais adiante é o Colégio Salesiano, onde boa parte da minha vida se enterrou.

Na frente da Praça Chora Menino há um prédio alto com uma barriguda por detrás do portão. Dali, seu pai saía até a Praça Maciel Pinheiro para rezar na Matriz da Boa Vista. Cortava o caminho pela Rua Velha, que é linda, e que desemboca no Pátio Santa Cruz, aonde eu ia com sua avó comprar tempero.

Na Rua Barão de São Borja tem uma escola pública, cuja casa pertenceu ao tal Barão. De pequeno eu já achava tudo aquilo belíssimo e ficava observando os meninos jogando bola, torcendo para que eu fosse chamado pra substituir alguém.

De algum lugar, que não me lembro bem, saem as ruas antigas do Recife, aonde seu avô me levava para passear: São José (bairro em que ele nasceu), Igreja do Livramento, Santo Antônio, Bairro do Recife, Rua Capitão Lima, casa de sua tia-bisavó que morreu há tanto tempo.

Mais ao norte da cidade, no bairro chamado Rosarinho, tem uma casa em que seu pai imaginou suas primeiras estórias e suas primeiras músicas. Ainda hoje se sente por lá um cheiro de comida árabe, que me remete, Maria, às nossas origens, quando o seu Tataravô chegou no Brasil para confirmar que essa era uma terra boa.

Depois eu fui morar em Santo Amaro das Salinas, no mesmo apartamento que me abrigou quando eu era assim, como você, recém nascido para o Mundo. Tudo lá é impregnado de revoluções. Inclusive da maior de todas: de quando eu comecei a pensar em você.

Nós moramos atualmente perto da Praça de Casa Forte, na chamada Freguesia do Poço da Panela. Foi aqui que eu me casei com sua mãe. Por aqui há um ar de Recife do século XIX que resiste em não sair dos casarões e das ruas de pedras portuguesas. As pessoas daqui gostam de comer bem e beber cachaça de cabeça, como se isso afirmasse o orgulho de pernambucanos. Eu acho isso tudo muito estranho, Maria Eduarda. Mas são boas gentes, acolha-as com sabedoria.

Para além daqui, de onde a gente mora, existe o mundo de Apipucos e depois tem o Jardim Zoológico e depois eu não sei mais. Por ora, é o que você precisa saber.

Essas são minhas referências mais antigas. Você terá outras; incomunicáveis para mim. Não sei se o carnaval será a festa mais bela de todas para você, como é para mim. Não sei se você apreciará sorvete de tangerina da Fri-Sabor, como eu e sua mãe. Não sei se você, ao passar pela Rua Imperial, olhará para um casarão quase em ruínas e pensará “quantas histórias se escondem por detrás daquelas paredes...” A felicidade está nas nossas referências, Maria Eduarda. Em saber quem nós somos. Que estamos ligados, indissociavelmente, da história de uma Cidade, seja Recife, seja qualquer outra.

Os deuses são tristes porque não são de nenhum lugar.

segunda-feira, outubro 15, 2007

Carta de Tia Aline para Maria Eduarda

Seja bem-vinda, Maria Eduarda, a este mundo maluco! Agora, em meio a sua ovelhinhas, você representa possibilidades incontáveis. Mas aqui nada é tão seguro quanto a barriga quentinha de sua mãe e o maligno senso de humor de seu pai.
Mas calma! Aqui também tem sorvete, tem Natal e tem amigos. Sua mãe não vai querer que você exagere no primeiro e seu pai certamente vai exagerar de mimos pra você no segundo. Quanto aos amigos… bem, são eles que não vão deixar você enlouquecer quando a vida começar a se tornar um pouquinho mais complicada.
Quanto a seu pai… pois é, Maria Eduarda, vá com calma no seu pai. Ele é bem menor que seu enorme coração, e por isso ele tende a ser um pouquinho exagerado. No amor e no castigo. Procure não deixá-lo doente de preocupações daqui a uns anos, e dê pulinhos de alegria todas as vezes em que ele te desenhar como numa revistinha em quadrinhos. (acredite: ele vai enchê-la de desenhos, música e poesia - aprenda bem rápido a apreciar tudo isso). E saiba que sempre, todas as vezes, em que alguma coisa de ruim acontecer, ele vai achar um jeito de te fazer rir.
Ainda bem que sua mãe é uma pessoa doce, meiga, e tranquila. Se você fosse filha só de seu pai essa carta não ia caber de tantas recomendações.
Tenha paciência com Shylock e Morgana. Sei que será difícil, porque eles são a coisa mais fofa que você verá em casa, mas tente. Lembre-se do que eles abriram mão para recebê-la bem (não se assuste, eles devem voltar ao normal). Eles encherão sua infância de brincadeiras e sorrisos.
Por último, recomendo que você faça como eu e assista, todos os fins de ano, o filme da Noviça Rebelde. O máximo de sabedoria que eu poderia passar para você eu aprendi ali. O negócio de que, quando Deus fecha uma porta, em algum outro lugar ele abre uma janela. Você, Maria Eduarda, é uma janela aberta.
Seja sempre portas e janelas escancaradas, e comece a viver assim, de amor.
De sua tia Nine.

sexta-feira, outubro 12, 2007

Sweet dreams are made of this


Não há poesia, ou filosofia que explique este deslumbramento, ou alumbramento
Parece que nada fez sentido até hoje
E ainda assim isso diz pouco

quarta-feira, setembro 26, 2007

Evocação

Tem virado costume nas manhãs de sábado
No quieto do meu quarto, a presença
Da Musa, da Primavera e da Cotovia
Que na beira do meu leito a repetir
Sempre a mesma ladainha
Convidam o que dorme a domar o mundo
E fazer do mundo desperto uma poesia

Mas eu nem abro o olho e permaneço
Nessa ociosidade permitida pela apatia
Deixem o mundo ser mundo por si mesmo
Não me encham o saco, Musa, Primavera, Cotovia

O mundo não precisa de mim, é isso que penso
Nem o mundo precisa de poesia
Já há poetas demais a serem despertados

Pois no silêncio do meu quarto abandonado
Despovoado de sonhos, de cantos e alegoria
Fecho os meus olhos em direção as minhas pálpebras
E enxoto do sábado, a Musa, a Primavera e a Cotovia

segunda-feira, agosto 20, 2007

ORECIC

Há uma demanda dos que me cercam direta ou indiretamente pelo significado de um boteco perdido no fim de uma rua desapercebida chamado ORECIC. A curiosidade é despertada toda vez que eu tracejo: “Vou ao ORECIC”, ou, de uma maneira mais gostosa, “Vou tomar uma no ORECIC”. A resposta é automática em todos os casos: “o que diabos é o ORECIC?”.
Ao explicar de maneira rápida e sem muitos detalhes que o ORECIC é o bar onde eu me reúno com os meus comparsas nas tardes do sábado, um mito inexplicável é criado. Para tantos e tantos, o ORECIC é um diamante incrustado no alheio dos que buscam os bares da moda; um cantinho familiar onde uma comida com tempero inenarrável é preparada, onde a cerveja é geladíssima, onde, às quintas, Cartola, Paulinho da Viola e Chico Buarque fazem uma roda de samba, e Camila Pitanga pega um avião completamente disfarçada só para sentar ao lado da gente e compartilhar da espuma do chopp geladíssimo vindo diretamente do Capela no Rio de Janeiro.
O ORECIC pode ainda ser um reduto gastronômico para iniciados, onde acepipes conservados em receitas familiares pernambucanas de gerações ancestrais permanecem inalteradas pela mão de ferro de uma grande cozinheira.
Muitos pedem para ir lá. Querem compartilhar do mistério que parece existir nessa palavra incompreensível, nessa mitologia que se alimenta das poucas palavras e do imaginário que rodeia essa instituição universal do ser humano: o bar.
Mas eu mantenho guardado a sete chaves esse meu assento sagrado, ainda que o ORECIC não seja nada disso, mas tão somente um lugar onde nos despimos de todas as convenções, gravatas, letras, gramáticas, físicas, matemáticas, sistemas, engenharias, bancos, automações. Onde somos reis de uma terra inóspita e nos orgulhamos do nossos títulos de digníssimos filhas de uma puta.

segunda-feira, agosto 06, 2007

Fazer anos

Deu-se que fiz anos antes da data do meu aniversário.

Padecendo da febre da dengue (e porque não sei ficar fora da moda), sentei-me na poltrona e fiz a única coisa possível para quem sente o corpo como se fosse um estorvo: fiquei imóvel, assistindo televisão. Para minha grata surpresa, a providência teve pena de mim e determinou que o canal “Telecine Cult” passasse “Roma de Fellini” para que eu pudesse esquecer um pouco das minhas fraquezas (eu gosto de pensar assim: a providência olhou para André e...). “Roma” é um filme belíssimo, com uma peculiar indefinição entre o documentário e a ficção, mas totalmente pensado através das percepções de Frederico Fellini sobre Roma, cidade que o contextualiza. Ao longo do filme, Fellini e Roma se misturam como personagens principais dentro da homenagem pintada com tintas impressionistas.

Sentado na minha poltrona pude entender que apenas quem sente o peso dos anos, dentro de um contexto de cidade poderia fazer uma homenagem como aquela. Não apenas uma homenagem à Roma, mas uma homenagem a si mesmo, como homem que compreende a cidade e as circunstâncias histórias que o cercam. Perder-se no seu contexto histórico é uma forma de se eternizar.

Ali, vendo aquela homenagem de Fellini à Roma, lembrei-me de uma viagem que fiz quando ainda tinha dezenove anos de idade. A Europa comemorava o centenário do cinema. Em Roma, entrei em uma exposição sobre Fellini e encontrei-me com o figurino utilizado por ele no filme que comento. Filme que só assistiria mais de uma década depois, padecendo da dengue.

Ao lembrar daquele instante no passado, vendo os mesmos figurinos observados ao vivo tanto tempo atrás, abriu-se uma janela imaginária na minha sala, e eu pude ver aquele jovem que eu era quando possuía vinte anos. Todas as escolhas que eu já fiz hoje ainda sequer eram pensamentos na minha cabeça e tudo estava impregnado de uma flexibilidade que não existe mais. Flexibilidade de moldar a vida de acordo com a vontade.

Como se pudesse perceber minha presença observadora, o jovem que eu fui olhou para mim e deu um sorriso do canto da boca, em respeito ao que sou. A imagem se desfez e o filme prosseguiu. Naquele momento eu havia feito 32 anos de idade.

segunda-feira, julho 23, 2007

Shylock e eu

Compartilho com Shylock essa resignação. Entendemo-nos com os olhos que algo natural mas singelamente revolucionário acomete nós dois. Tal indigesta compreensão se deu na última visita de Shylock à veterinária, quando a sentença foi proferida: “Shylock não é mais um jovem, ele precisa de comida para gatos maduros castrados”. Essa sentença não foi apenas para o meu gato. Foi para mim também. Naquele momento, ao olhar Shylock como um ser vulnerável ao tempo, percebi que estava – do mesmo modo – na metade da vida expectável para uma criatura urbana, que já nasceu, que já cresceu e que não possui novas formas verbais para descrever o percurso da vida até a chegada da indesejada das gentes. Nel mezzo del cammin di nostra vita.
Eu e Shylock somos dois maduros castrados. Shylock é castrado no sexo. Eu sou castrado no transborde da vida. Shylock foi castrado para não destruir a casa em busca de uma fêmea. Eu fui castrado para me tornar exatamente aquilo que a sociedade pede de um macho maduro: provedor, obrigado, circunspeto.
Shylock não consegue mais subir na mesa. Eu ando me esquecendo de compromissos. Shylock não dá três passos sem parar e suspirar. Eu não tomo ações sem pensar nelas cinco a seis vezes (riscos e derivativos). Shylock não tem mais paciência para tomar banho. Eu também não.
Toda vez que sento no sofá, ele se aninha perto de mim, como se dissesse: “E aí, irmão, vamos fazer o quê nesse primeiro dia do resto de nossas vidas?” Eu olho para ele com alguma esperança e digo: “Ora, Shylock, foi justamente nesse momento que Virgílio apareceu para Dante e o levou para conhecer o infinito; foi justamente nesse momento que a máquina do Mundo se abriu para Carlos Drummond de Andrade. Quem sabe não nos aparece algo que o valha?” Ele suspira meio incrédulo e fica aguardando algo que nos contamine de vida.

Enquanto isso, no silêncio além de nós, Maria Eduarda dorme no ventre da mãe.

quarta-feira, julho 18, 2007

O poema olha para a vida

Vivo
meu instante final e é como
se vivesse há muitos anos
antes e depois de hoje,
uma contínua vida irrefrável,
onde não houvesse pausas, sonos,
tão macia na noite é esta máquina e tão facilmente ela corta
blocos cade vaz maiores de ar.
Sou vinte na máquina
que suavemente respira,
entre placas estelares e remotos sopros de terra,
sinto-me natural a milhares de metro de altura,
nem ave nem mito,
guardo consciência de meus poderes,
e sem mistificação eu vôo,
sou um corpo voante e conservo bolsos, relógios, unhas,
ligado à terra pela memória e pelo costume dos músculos,
carne em breve explodindo.

Ó brancura, serenidade sob a violência
da morte sem aviso prévio,
cautelosa, não obstante irreprimível aproximação de um perigo atmosférico
golpe vibrado no ar, lâmina de ventono pescoço, raio
choque estrondo fulguração
rolamos pulverizados
caio verticalmente e me transformo em notícia.

(Morte no Avião - Carlos Drummond de Andrade)

quarta-feira, julho 11, 2007

CONCÍLIO VATICANO

Por decreto papal fica assim determinado
que Cristo não pode jamais se transformar em elefante
visitar a Índia e se compadecer das castas
não poderá adotar o nome de Shiva

Por decreto de Sua Santidade, o Papa
fica Cristo proibido de festejar nos terreiros
de aparecer vestido de branco e comer pipoca
com seus pares. Que ele não se chama Oxalá
e Oxalá é coisa dos negros

Que esteja ressaltado, nos termos dessa norma
que estão fora do benefício da piedade
proibidos de comungar da face concedida
apartados do sacrifício final
os protestantes, porque protestam

E assim determinou o Papa, nesse Concílio ensimesmado
que Cristo ande na linha
que seja fiel com seus ministros
nada de sorrir para quem não vai à missa
ou ensinar filosofia nas universidades

Cristo tem que ficar
pendurado no seu lugar por direito
crucificado eternamente
eternamente dolorido
lá na igreja católica, o monopólio do menino
que achava que tinha vindo ao mundo para todos

segunda-feira, julho 09, 2007


O ovo, essa forma explícita
de se ocultar o sagrado
como se fosse o não sendo
do que ainda será formado
como se fosse o futuro
invisivelmente resignado
Ou uma inversão de sinais:
O dentro para fora tragado

quarta-feira, julho 04, 2007

O CÍCLOPE

Lanço-me ao mundo como quem
por nada se abate no meio do caminho
mas refaço (na mente, ora sozinho)
a alegria de ser bandeirante
dessa estrada normal, fronte e perene,
como se fosse eu navegante
do navio do mundo, esse rente.

Mas antes de cruzar a minha rua
que é porto desse mar inexistente
bem no ápice da glória de ser
homem livre, imortal, transcendente
um gigante me pára e me estanca
com uma carranca de olho-só reluzente

E me olha com o olho bem vermelho
e me diz que o mundo a ser descoberto
é para quem, em si circunspecto,
detém a passividade do que sonha
e não do que se lança ao mar (sob glória)
com velocidade na alma sempre risonha

“Eis que me chamam semáforo ou farol
e eu sou a lembrança sempre presente
de que até mesmo o sol (em seu conseqüente
caminho), ao fim do dia simplesmente
cessa; interrompe-se azul no fim do horizonte
para que se possa dele dizer ‘de si, recomeça’

pare, por isso, e se contenha
espere que o tempo do mundo sobrevenha
e só assim, parado, poderás partir”

Eu, que ao meio do caminho não me abatia
nem por nada parava e prosseguia
com a imensa sede de domar essa nau
o navio do mundo, proa de pau
e gente, vou desfazendo essa alegoria
da velocidade inconseqüente e valentia

Então sob o olho vermelho pude entender
que no meio do caminho haverá sempre
uma parada. Que para poder se lançar
em uma nova nau ou na mesma estrada
a parada é escada nesse mar inexistente
lar do navio que sente essa imensa sede

E o olho do ciclope ficou verde

terça-feira, julho 03, 2007

A despeito de tudo, eu gostei do cartaz


Quase uma crítica de cinema

Assisti extemporâneo a Baixio das Bestas, movido bem pela curiosidade de ver novamente um filme do Cláudio Assis. O diretor havia repercutido bem no meu imaginário a partir de Amarelo Manga. Logicamente as circunstâncias eram outras, e o texto da obra se perfaz com o contexto do auditório: em Amarelo Manga eu via, pela primeira vez, o Recife real pintado nas telas do cinema. Recife sem concessões à beleza decantada nos inúmeros frevos de bloco. Recife sujo, feio, do ventre inchado, amarelo e roxo como o cadáver Boca-de-Ouro das estórias de Gilberto Freyre.
Aqui e ali, alguns defeitos de narrativa e idéias caricatas, mas nada que prejudicasse o promissor caminho que seria trilhado a partir de então pelo diretor Cláudio Assis.
Justificada, portanto, minha curiosidade acerca do filme Baixio das Bestas.
O filme se desloca do urbano tratado em Amarelo Manga para a Zona da Mata pernambucana, onde se vê um purgatório situado entre o inferno de concreto da urbis recifense e o paraíso selvagem dos sertões pernambucanos. Novamente, como no filme anterior de Assis, não há foco em um personagem específico, mas o desfile de caricaturas que irão tratar, cada um a seu modo, a tese do filme: sexo e violência em uma sociedade decadente de valores. A tese de Amarelo Manga se repete, a diferença está na geografia que, de uma forma ou outra, irá refletir como elemento singularizador do que já antes foi mostrado.
Das críticas que tenho lido, há sempre o entusiasmo pelo Brasil (ou Nordeste) real retratado sem cores artificiais pelo diretor. A crítica do Sudeste não tem economizado nos elogios à lente real da câmera, lente de carne não de vidro, lente de gente não digital. E confessei que esse mesmo elogio à carne foi que me entusiasmou à época de Amarelo Manga. O contexto era outro, e essa carne exposta hoje não traz tanto entusiasmo a mim, que não sou crítico, mas auditório.
Baixio das Bestas tem o seu valor. Fica fácil de perceber sua importância a partir da câmera segura, da fotografia excelente, e dos atores que demonstram desprendimento na entrega à tese defendida no filme.
O grande problema de Baixio, no entanto, reside na percepção de que é muito fácil chocar a crítica do Sudeste a partir da reprodução da violência que já estamos acostumados. E assim o filme se transforma em um simulacro do jornal cotidiano capaz de gerar o mesmo tipo de discussão que se tenciona a partir do filme. As saídas fáceis continuam na forma caricata dos agroboys, tratados a partir da leniência materna que pode ser interpretada como representação fácil do próprio Estado ausente; a metáfora fácil da fossa interminável, a fala fácil do personagem interpretado por Matheus Nachtergaele, que trata a metalinguagem de maneira fácil.
O filme ficou fácil ao tratar de um tema difícil. E só se choca com ele quem não mora na minha rua.

sexta-feira, junho 22, 2007

Na Rua do Sabão

Cai cai balão
Cai cai balão
Na Rua do Sabão!

O que custou arranjar aquêle balãozinho de papel!
Quem fêz foi o filho da lavadeira.
Um que trabalha na composição do jornal e tosse muito.
Comprou o papel de sêda, cortou-o com amor, compôs os gomos oblongos...
Depois ajustou o morrão de pez ao bocal de arame.

Ei-lo agora que sobe - pequena coisa tocante na escuridão do céu.
Levou tempo para criar fôlego.
Bambeava, tremia todo e mudava de côr.
A molecada da Rua do Sabão
Gritava com maldade:
Cai cai balão!

Subitamente, porém, entesou, enfunou-se e arrancou das mãos que o tenteavam.
E foi subindo...
para longe...
serenamente...

Como se o enchesse o soprinho tísico do José.
Cai cai balão!
A molecada salteou-o com atiradeiras
assobios
apupos
pedradas.

Cai cai balão!

Um senhor advertiu que os balões são proibidos pelas posturas municipais.

Ele foi subindo...
muito serenamente...
para muito longe...

Não caiu na Rua do Sabão.
Caiu muito longe... Caiu no mar - nas águas puras do mar alto

Manuel Bandeira

segunda-feira, junho 18, 2007

Ster, Pernambuco na imensidão

Estava em falta grande com Ster. Aí me apareceu essa foto, onde ela é uma personagem de Jorge Amado (em miniatura) ou a inspiração de Alceu Valença na composição de Morena Tropicana. Mais São João impossível. Beijão, Ster; você é linda.

quinta-feira, junho 14, 2007

O FANTASMA DA REPARTIÇÃO

Quando o corpo esfriou de matéria
E o caixão era tudo que se mostrava restar
Sr. José Antônio levantou-se do seu túmulo
E objetivando a repartição pôs-se a andar

Anda que anda: “será que não há descanso
para a alma concursada?”

Enquanto algumas almas seguiam para o inferno
Enquanto outras tantos para o céu rumavam
O Sr. José atravessa a Rua do Imperador
Como se os formulários públicos fossem sua estrada

E o vigia da repartição por vezes e outras
No fim da noite jurava que ouvia
Uma máquina de escrever batendo sozinha
Escrevendo em papel nenhum a mesma melancolia:

“É da eternidade da alma que nasce o suspiro
É da eternidade da alma que nasce a burocracia”

terça-feira, junho 12, 2007

“Quando teu não-olhar encontra meu olhar
é mentira
é o desejo querendo concretizar-se
teu ícone paralisado bebendo meu movimento
o que poderia ser e o que não é”
( Poema extraído do Diário de um Médico de Rubens Aires)

“ Então eu vi Rubens pela primeira vez. A princípio o achei parecido com Fabrício. Deus meu, como estava enganada. Do segundo relance, quando meu noivo chamou a atenção, vi uma beleza que não era comum a tantos homens com quem tenho cruzado por este mundo. Seus olhos escuros, sua face lisa, sem barba, sua boca bem feita. Não era alto, não era baixo, mas quando gesticulava, parecia tornar-se enorme frente a pequenez da nossa pluralidade campestre. Rubens era singular, diferente da introspeção destas terras que se parece muito com a introspeção dos suíços e dos belgas. Naquele momento em que ele beijou a minha mão, senti o hálito terrível do destino baforando em minha nuca e o suspiro de Fabrício se afastando de minha boca”
( Texto extraído do diário pessoal de Ariel Souza d’Alencar, publicado com a permissão da família Souza d’Alencar).

sexta-feira, junho 01, 2007

As Músicas do Disco (será que sai :( ?)

The Outsider´s Samba Soundtrack

Chegou atrasada e demente
Com marcas que possivelmente
São feitas sob os lençóis
Bebeu do meu copo na mesa
E me disse “é apenas cerveja,
Então não faça caso irmão
Que hoje eu não estou pra não”

Beijou a boca da Rosa
Enfiou-me um dedo de prosa
Pedindo pra eu não me afastar
“Que trago cocada boa
e outras coisas à toa
enquanto o Mundo vai dormir
vamos fazer o samba cantar”

Ela é minha rota desvia
A noite sangrando em meu dia
Canonizada por beberrões
Santa de pecados e de ladrões

Agora eu estou sem ela
E a vida me vê na janela
Olhando a vida passar

Agora eu estou na janela
E a vida que se faz sem ela:
Café, almoço e jantar
(esperando a vida passar)
(lá fora o samba vai cantar)




O Jovem Gilberto Freyre ou a Invenção do Brasil

Essa multa quando pisa no terreiro
Ilumina um povo inteiro
Dentro do meu coração
Eu vou traçando em suas pernas novas rotas
Como quem suave aporta
Em um porto em formação

Essa cabrocha do gostinho brasileiro
Me concede o corpo inteiro
Pra eu entender a minha mãe
Vai tatuando em minha pele um novo Estado
Que emerge inventado
Na ante-sala das manhãs

Se ela vive entre as estrelas
Se ela é meu grande amor
Ai minha cabrocha
Flor do mundo
Minha flor

Ela vem me dar um beijo
Reconstrói minha raiz
Abro os meus braços
E abraço o meu país

Eu ouço os passos de um país se costurando
Nas alcovas se formando
Entre desejos e tendões
Eu ouço as vozes de um país que é sussurrado
Como quem faz um pecado
E não se arrepende depois

Eu vejo os passos da morena brasileira
Se chegando sorrateira e presidindo minha nação
E na delícia dos seus passos mais bonitos
Vou convencer os mais aflitos
Que isso é evolução




Valsa para Angenor


Entre a carne e a cruz
Onde mora a dor
Onde o meu samba fez morada
E a semente nunca vira flor

Nesse grande mar
Solitário e vão
Fico porta-voz da alvorada
Cubro de verde e rosa o meu chão

A noite quando me vem é madrugada
E o mundo já se tarda dentro de mim

O samba é quem me mostra
A flor a ser exposta
Na valsa da solidão de quem diz sim




Samba Muderno

Esse samba de roda é muderno
É pra quem tem sandália no pé
Descobri que o samba é a força
Que põe força na minha fé

Vou deixar minha guitarra de lado
Vou deixa minha barba crescer
Pedir bença pra Mãe Clementina
E fincar minha raiz num bangüê

Você pode ser emo ou Hermano
Você pode ser do Mombojó
O meu samba de roda é muderno
Mas é levado na palma da mão

Sampleando a voz do passado
Vou cantar a glória nacional
Onde quer que se faça um barraco
Vai ser lá minha Lapa pessoal

Burburinho (to lá...)
No Cafofa (tô lá)
No Quintal (to lá)
Lá na Toca....

Estorinha de Luciana

Luciana nunca atende o celular. Sempre nos momentos mais ordinários da vida, quando realmente precisamos de mais do que um eco no outro lado da linha, a chamada segue seu tom até o fim sem que me reste um “alô” por conforto. Luciana nunca atende o celular. O seu número gravado na memória digital do meu aparelho é um memorial à esperança de que um dia, quando o céu de agosto tocar o horizonte, Luciana consubstanciar-se-á em impulsos elétricos, em lembranças de cheiros, em um corpo que um dia confrontou o meu. Mas só esperança. Duvidam eles de mim: Luciana não existe. Como crianças amorais de um pré-escolar imaginário: Luciana não existe.
Existirá Luciana? Somos algo mais do que esses impulsos elétricos que enviamos para os nossos? Além desse número digital, há alguém que se conforta com sua pele, seus olhos, seu cabelo? Chego a duvidar de Luciana, e tomo por testemunha esse tom de chamada nunca atendida que me diz: Luciana nunca atende o celular.
E Luciana, que nunca atende o celular, vai migrando para a casta das figuras mitológicas, dos deuses esquecidos, das nossas senhoras da moda que passou. E lá do outro lado da cidade, mora uma menina chamada Luciana que por nunca atender o celular virou lenda.

quinta-feira, maio 31, 2007

Pour Rodrigo

Polly Nichols
(Rodrigo Pinto)


Quase seis, a tarde morta.
A noite dobra a esquina.
A chuva deu uma trégua,
Mas deixou uma bruma fina.
Esse ar enevoado,
Embaçando minhas retinas,
Lembra o fog tão fleumático
Das tais vielas londrinas
Perto da branca capela,
Onde Jack, o Estripador,
Imolava as suas vítimas:
Mariposas muito brancas
E vermelhas, viciadas
Em gim vagabundo, tísicas.

Certa feita uma delas
Me apareceu em sonho
E falou no meu ouvido
O nome do seu algoz.
“A morte é imponderável
Como uma rosa desmaiada”,
Disse, num fatal suspiro,
A paloma malsinada,
Dirigindo-se à janela
Que mantenho sempre aberta,
Mesmo quando o frio lá fora
É um açoite (afinal
Nunca se sabe quem po-
derá do meio da escu-
ridão sair para di-
zer-me o seu boa-noite).

quarta-feira, maio 30, 2007

Bebel


quarta-feira, maio 23, 2007

REVEL

Trago sempre comigo essa impressão de revelia
De que as coisas acontecem no ponto cego do meu retrovisor
Desapercebidas de mim que me preocupo com a rua defronte
E não consigo enxerga-las no ponto cego do meu retrovisor:
Um unicórnio negro, Ulisses se preparando para sair de casa
Um ciclope, uma bruxa, Jesus Cristo

Quando dou por mim, eles já não estão mais lá
E só me sobra esta estrada de concreto
Com pessoas preocupadas se vão morrer
Homens consertando os postes de luz
O vapor da vida a despejar-se dos seus suportes vãos

Mas a beleza sobrevivente dos contos de fada
O mistério do divino para o ateu e para o crente
A máquina do mundo a abrir-se para quem nela crê:
Sempre no ponto cego do meu retrovisor

À revelia de mim, o mundo vira poema

segunda-feira, maio 21, 2007

Vem Oxóssi, Oxum também
Jesus, Krishna, Buda, amém
(quando você vem)

Reza prá afastar desdém
Lentes prá enxergar além
(quando você vem)

Me iluminar, minha filha, me iluminar
Me iluminar, minha filha, me iluminar
(vem me iluminar...)

terça-feira, maio 15, 2007

O amor pela manhã

As coisas amanhecem fictas
Metade ainda de matéria sonhada, outra metade quiçá
irreconhecível de si, como se lançada do útero naquela hora:
o bocejo, o olho entreaberto, o livro não lido
as dúvidas se somos aquilo que somos
ou algo sonhado pelo que não compreendemos

As coisas amanhecem nuvens
Coisa real à vista, mas ao tato, à língua, ao cheiro
irremediavelmente fugidio a tangência do homem
Custa a chegar essa matéria, que só advém depois do banho

Mas nós, nós amanhecemos carne
passíveis de sermos tocados por qualquer um que se aproxime
embora segredados pela cama que é embrulho dessa carne
gritamos o pregão tão real quanto o do vendedor de vassouras:
-Temos cheiro, temos gosto, podem nos tocar

Vamos ser fictos no decorrer do dia
Enquanto o mundo se materializa em preços
Metade de nós queda sonhando com a carne que antecedeu ao sonho,
nos dispersamos como nuvem na multidão tangível

terça-feira, maio 08, 2007

Imagine me and you, I do...



Esses são aqueles que fazem a vida ficar mais leve (apesar do excesso de peso de alguns).

Esses são aqueles que levam a verdade para minha vida (apesar das mentiras de pescador)

Esses são os eternos (apesar do bolão pé-na-cova)

Hooligans, Intocáveis ou simplesmente os meninos...

quarta-feira, maio 02, 2007

Lavoura

Plantei em meu peito vinte rosas rubras
Reguei e adubei com todas as coisas-belas a que minha vida se submeteu:
A face concedida depois da cama, a humildade de se supor nada e nunca, a estética simples
Do nada desejar senão aquilo que se é concedido
Aguardei a primavera como quem enxerga castelos e destinos para além da televisão

Mas a terra que cedeu em meu peito não era propícia à lavoura de rosas
E as sementes em mim plantadas se contaminaram com coisas-reais (coisas fatalmente reais como o choro de uma mãe que sobreviveu à morte do filho
como o desejo inconfessável de um velho que morre aos poucos frente a uma escola ginasial)
contaminaram-se com as minhas indisfarçáveis guerras contra o grande amor

E eis que ao invés de rubras rosas, nasceu em meu peito uma planta carnívora

E é por isso que sou poeta

segunda-feira, abril 30, 2007

Tigre, Tigre



Tiger, tiger, burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Dare frame thy fearful symmetry?
(W. Blake)



Maria Eduarda me puxa pela mão e me mostra o segredinho de tantos dias: um tigre branco. Mas um tigre, Maria Eduarda? É, um tigre, papai...Tento explicar à Maria Eduarda que tigres são criaturas selvagens, ou que, do ponto de vista do romantismo inglês, os tigres são a perfeita representação da força da natureza, e, portanto, não seriam as criaturas mais plausíveis para caminhar pela sala de jantar. Mas qualquer argumento estético ou biológico fenece perante os olhinhos de retrós de Maria Eduarda que proclama: ele é tão bonitinho.

Devo concordar que o tigre branco é realmente de um apuro estético extremamente prazeroso para qualquer mortal, ainda mais para uma criança de dois anos de idade que passou suas tardes olhando um livrinho de fotos de animais. Poder-se-ia argumentar que o tigre branco é uma criatura inverossímil, diante da incapacidade da babá de enxerga-lo, ou do descaso da mãe que não compreende a importância de um tigre branco, principalmente se confrontado com coisas mais tangíveis como a falta de leite em pó, ou o barulho insistente da geladeira.

Mas quem sou eu, tão liberto da verdade aristotélica, para não dar crédito ao tigre branco de Maria Eduarda que passeia pela sala de estar e olha curioso para a televisão ligada. Ele acompanhará minha filha pela vida afora, deglutirá, selvagem, cadernos de lição, livros de matemática, o menino chato que grudou um chiclete em seu cabelo.

Um dia, quando eu não mais o enxergar, o tigre virá sorrateiro, após a noite mal dormida em que proibi Maria Eduarda de ir a um show, e me devorará em silêncio sem que eu perceba meus braços, minhas pernas e meus olhos indo embora da existência sonhada.

E nas florestas da noite, Maria Eduarda terá crescido.

sexta-feira, abril 20, 2007


Galega: sou muito mais você do que todas essas poesias, filosofias, pensamentos
sou muito mais você do que Habermas, Dworkin, Apel
sou mais você do que Drummond, Pessoa, Yeats
mais você do que qualquer explicação da moral pós-transcendental
do que a guinada linguistica da filosofina analítica
que a palavra
q...
...

terça-feira, abril 17, 2007

A TERCEIRA GUERRA MUNDIAL

Muitos perguntavam para o Sr. David porque ele insistia morar perto da Kurfürstendamm; O aluguel do imóvel é caro e não existem as facilidades requisitadas para alguém daquela idade.
O que o Sr. David não confessava é que havia certo prazer em ser vizinho de um homem como Günter Grass; Não que o Sr. David fosse amigo ou coisa que o valha daquele senhor sempre acompanhado pelo cachimbo; sequer havia lido suas obras e seu teatro do absurdo. Só gostava de pensar que, na sua solidão, estava acompanhado de uma mente que havia ajudado a construir aquele tempo.
Entre eles havia o espaço de um cordial “bom dia”. E essa possibilidade de uma conversa maior, estancada pelos afazeres de ambos, era o suficiente para o gáudio do Sr. David.
As confissões de Günter Grass atingiram, de um modo ou outro, toda a classe intelectual alemã. Mas não tenho dúvidas que o Sr. David sentiu de modo desproporcional a entrevista concedida ao 'Frankfurter Allgemeine Zeitung', onde o Sr. Grass afirmou que foi voluntário ao servir a tropa de elite nazista.
No dia seguinte à publicação, o Prêmio Nobel de Literatura de 1999 encontrou o Sr. David na porta de casa e repetiu o rito do “bom dia”. Não houve resposta. Naquele mesmo mês, não havia mais vizinhança.

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Foi uma surpresa para Lindonéia encontrar Dona Clara na audiência pública convocada pelo Ministério Público. Lindonéia sempre reputou Dona Clara como uma pessoa de bem e fazia questão de levar suas amigas para apreciar o acarajé vendido na porta da sua Igreja-Assembléia.
Estando Dona Clara naquela audiência, ficou claro para Lindonéia que a vendedora de acarajé era íntima do terreiro de Pai Adão e, portanto, também responsável pelos cantos que invadiam e violentavam os louvores ao Deus único.
A Promotora não sabia como resolver as divergências de uma e de outra denominação religiosa. Não se sabia qual culto havia se estabelecido primeiro naquela circunscrição; os livros, as leis, a Constituição não ofereciam melhor resposta do que um oráculo de previsões vagas e imprecisas.
Ao sugerir o respeito mútuo e a compreensão às diferenças, a Promotora viu, pelo rabo do olho, Lindonéia passar na frente de Dona Clara e cuspir no chão, demarcando o limite entre um e outro deus.

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Eu sinceramente havia esquecido o motivo daquela briga. Mas não ia abrir mão daquele silêncio. Havia um motivo ainda que esquecido entre a xícara da noite anterior e o marcador de livro lançado no chão.
Não olhei para ela. Coloquei a camisa, liguei o ar condicionado no máximo e deitei com as minhas costas voltadas para a coluna arqueada dela, que tecia uma muda conversa com o espaço de ar entre nós.
Não pedi desculpas. Não esperei desculpas dela. Eu segurava aquele silêncio como troféu de uma corrida em que não havia certeza de vencedor.
Fechei os meus olhos e quase pude ouvir as sirenes do bombardeio antiaéreo invadindo a cidade.

terça-feira, abril 10, 2007



Atrás da casa a porta

Atrás da porta o sofá

Atrás do sofá a sombra

Atrás da sombra a sombra

Um mistério sempre por detrás do outro

sorrateiro, silencioso e imperceptível

como esse que se é e que se desencarna de nós

segunda-feira, abril 02, 2007

TOURADA

Isso, que me repudia, o matrimônio
Não entre a carne e a carne, mas a elegia
entre a carne e o aço, eu diria,
entre o touro e o braço à luz do dia

Isso, que me repudia, ou deveria,
causar ânsia de vômitos ou apatia
Dantes me causa um assombro ou uma alegria
De ver em tal casamento a fidalguia
da união carne a carne à luz do dia

O touro, este esposo em fúria, de si avança
Para abraçar sua morte, febril se lança
Que o casamento na arena não guarda a vida
Mas une em antítese a carne a sua própria ferida

Que a arena é da vida a anti-vida, da parte a contra-parte
Onde há a união, mora o aparte
Onde nasce o homem, Deus encontra a morte
Onde encontras teu executor, eis o teu consorte

segunda-feira, março 26, 2007

O Jogo Handke

Quando eu era criança
No tempo que minha janela dava para um pátio de escola
Meus olhos buscavam se fixar em um jogo de bola
Que se repetia sempre no mesmo horário

E eu admirava
Os jovens heróis que saíam do liceu
Davam as costas à cultura e à civilização
E repetiam o desdém de Esparta para com Atenas

Quando eu era criança
No tempo que minha janela dava para um pátio de escola
Meus olhos viam os jovens transcender suas circunstâncias
O tempo parava para saudar o jogo de bola

Ao nosso redor
uma inflação galopante corroia o tutano dos nossos pais
Não havia carne nos supermercados, nem nos nossos dentes
Homens se lançavam de prédios buscando a paz

Quando eu era criança
No tempo em que minha janela dava para um pátio de escola
José se lançava além de José, e tudo que importava era o gol
E eu admirava

Como quem assiste o extermínio de uma Tróia
Como quem é testemunha ocular de uma civilização esquartejada
Como um historiador que encontra um velho soldado
Como o escudeiro do maior de todos os heróis

Ao nosso redor
O povo clamava por eleições diretas
A língua inglesa colonizava as nossas refeições
As favelas mimetizavam a ousadia das marés

A casa com a janela não existe mais
alguém me disse que eu havia crescido
O que foi feito de José e dos outros heróis senão a realidade?
Eu descobri que as coisas aconteciam ao meu redor

As eleições diretas
O mar de favelas
José morto

É esse entorno de mim que me mata

quarta-feira, março 21, 2007

Eu te disse...

Aí o Secretário Ariano Suassuna disse que quem escreveu a letra de uma música do Calypso era um "idiota, um imbecil". Eu tinha escrito anteriormente nesse blog que eleger um símbolo para administração da coisa pública poderia dar em má coisa. Sobremodo se esse símbolo é de um hermetismo em relação a formas de expressão artística que não as eleitas por si ou pelos seus.

Longe de mim lançar loas à música do Calypso. As letras são de uma precariedade simbólica que dispensa qualquer comentário mais aprofundado. A música é pobre dos seus arranjos à estrutura melódica. Mas quem sou eu para questionar a legitimidade dessa expressão musical? Sou versado em música? Sim, mas ainda assim não acho que esse fato em particular possa me dar um argumento de autoridade para questionar a legitimidade de uma música (ou de um gênero musical) quando o subconsciente da população está atrelado ao que eu não concordo como técnico.

Quero que fique claro: a crítica é legítima. O Secretário de cultura poderia dizer que esse gênero musical (se é que podemos algutinar as linhas do brega em um gênero) é pobre musicalmente, que suas letras se afastam da criatividade e da arte poética, ou ainda de manifestos inteligentes seja pela manutenção do status quo, seja pela superação do mesmo. O Secretário de cultura poderia sugerir que a população ouça outros gêneros musicais tecnicamente mais próximos do que seria a "bela-arte".

Mas o Secretário de cultura jamais poderia levar sua crítica a um grau de pessoalidade que o faz taxar de imbecil o compositor de uma canção imbecil. Esse discurso não condiz com o discurso de um Secretário de cultura. Condiz com o velho discurso de Ariano Suassuna que sempre elegeu seus requisitos e caminhos para se chegar em um conceito unívoco e válido de "arte". E aqueles que não se filiam a sua ditadura de requisitos e caminhos são idiotas e imbecis.

sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Filie

Trago em mim algo imaculado

Fui justificado perante os séculos
Fui perdoado de todos os meus pecados
Um bom abre meus olhos para quem eu não era:
Pois trago em mim algo imaculado

Parem os bondes, as mortes, o aplauso à criança torturada
Cessem os choros, judias
Cale-se a devastação que sai do útero das máquinas
Desliguem a televisão:
Trago em mim algo imaculado

Abram as portadas da cidade imaginada
Abracem-se os mendigos com os grupos de extermínio
Eu quero uma foto amarelada de magnésio a romper o tempo
Perpetuando essa esperança que se deitou em minha cama:
Trago em mim algo imaculado

Vou despejar a vida como quem segreda a morte
E me farei à imagem de algo que apenas intuo
Adeus palavras, medos, ausências:
Trago em mim algo imaculado

quinta-feira, fevereiro 01, 2007


Os animais foram imperfeitos,
compridos de rabo, tristes de cabeça.
Pouco a pouco se foram compondo,
fazendo-se paisagem, adquirindo pintas, graça vôo.
O gato, só o gato apareceu completo e orgulhoso:
nasceu completamente terminado,
anda sozinho e sabe o que quer.
O homem quer ser peixe e pássaro,
a serpente quisera ter asas,
o cachorro é um leão desorientado,
o engenheiro quer ser poeta,
a mosca estuda para andorinha,
o poeta trata de imitar a mosca,
mas o gato
quer ser só gato
e todo gato é gato
do bigode ao rabo,
do pressentimento à ratazana viva,
da noite até os seus olhos de ouro
(Neruda, Ode ao Gato)

terça-feira, janeiro 30, 2007

"Bendita seja a morte que é o fim de todos os milagres"

M. Bandeira

quarta-feira, janeiro 24, 2007

Os poemas de Francisco me deixam melancólico, porque traduzem com lâmina exposta a melancolia que habita nele. Esse é o móvel do poema, transcender o particular e alçar a dor alheia sem se dar conta dela. O poema abaixo lembra um poema que eu fiz em circunstâncias que acredito semelhantes as que levaram Francisco ao cinzel tão contundente. E isso sem que houvesse comunicação explícita, apenas porque ele virou letras.

Por descuido cruzei a fronteira.
Vivo estrangeiro em minha casa.

Bagagem revistada.
Íntimo exposto.
Parte impedida de prosseguir.

O peso dos rancores.
As múltiplas máscaras.
Memórias de amor.

Necessário o catálogo da vida.
O inventário de cada item a abandonar.

E lá se vão pedras e mais pedras.
Passos e mais passos.
Estórias.

E lá se vai insensatez. E espera.
E lá se vai tristeza.

No fim, apenas o indispensável.
O retrato do menino de cabelo de milho,
com sua família centenária.

Punhado de lembranças.
Organizadas por épocas.
Convergentes.

Bagagem revisitada.
Caminho exposto.
Parte regressa, parte prossegue.

O estrangeiro de mim se despede.

Fco.

quarta-feira, janeiro 17, 2007

O que é o mundo, perguntou-me Bia


O mundo, Bia, é uma porção de palavras a serem domadas.

Eu te dou algumas delas, que fazem parte do meu mundo: desasossego, candelabro, tramela, compaixão, engenho, garrinho, pálpebra, despojo, salmo, constitucional, maravilhado, bilha, determinação.

quinta-feira, janeiro 11, 2007

Canção do Exílio, 07-08-1969


Se teus olhos estivessem aqui, Maria, veriam que minhas mãos enfim. Despertaram-se das algemas, e hoje sorriem para mim. Mas eu não rio para ninguém, Maria. Decerto por causa do frio.

Um frio que dá aqui dentro, nas cordilheiras dos meus rins. Que começa cá no Chile e sobe para o vidro dos olhos. Procura, procura e nada. Nem Maria, nem consolo, nem diabos, nem querubins. Maria, se você pudesse, ver as minhas mãos libertas, e deixa-las presas em Maria, lágrimas não haveria, nem nos meus olhos nem nos de ninguém. E as flores não morreriam, Maria, e o inverno não mataria, Maria, quem a gente quer bem. Meu passaporte seria a tua palavra. Dirias o que sabes de mim. E falarias de Maria, dos meus pecados, dos meus querubins. E isso me bastaria, não precisava de mãos libertas que hoje despertam enfim.

Maria, se você pudesse ver Santiago do Chile. Teus olhos procurariam os porquês do sabiá. Que não há garrafada de feira nem roda de se cantar. Segurarias meus dedos, com medo de avançar, dentro dessa língua-palato, Maria, e eu iria te acalmar. Contava estórias de sangue, de um tempo que o mar levou. Em que eu vencia bicho grande, Maria, e liberdade ao vencedor. Depois te ensinava a dar cada passo nesta terra estrangeira, pra gente se perder na gente, mas mantendo a alma brasileira. Faríamos feijoada quando chovesse, Maria, e chamaríamos os nossos pares, esvaziaríamos as revoluções, os quintais dos nossos lares, para relembrar que Chico, Maria, lançou um novo LP. Que em Dezembro chega de contrabando e a gente tentando conter, o deslumbramento perante a palavra, Maria, o choro equivocado, Maria, a dor atravessada, Maria, tudo que eu sinto hoje, Maria, e hoje não há você.

Se teus olhos estivessem aqui, Maria, veriam que minhas mãos enfim. Despertaram das algemas. E hoje sorriem para mim. Mas para quê mãos libertas, Maria, se tu não estás aqui? De que me vale um país livre, sem tua boca para me trancar? Meus olhos já se esqueceram dos porquês do sabiá.


A carta de Augusto Carneiro nunca foi enviada à Maria, sua noiva que ficou em Recife, no ano de 1969. Augusto morreu de câncer no Chile em Outubro de 1972. Maria se casou com Hermano Souza Santos, hoje captador de recursos na Fundação de Cultura da Prefeitura da Cidade do Recife. O amigo chileno de Augusto Carneiro, Juan Remoz, herdou seus pertences pessoais e seu livro nunca terminado, e publicou a carta transcrita acima no “Diario de la Nación” em 08/07/1982. Os leitores reclamaram que não houve tradução para o espanhol.

quarta-feira, janeiro 10, 2007

Boca

Que se por um lado, a felicitação de estar nos Brasis, por outro, a dor de estar longe da Bahia. Mas as terras de Pernambuco iam de ser iguais, diziam. Risonha ao cetim e amarga à crítica. Gregório chegou onde o Beberibe e o Capibaribe se juntam para formar o Oceano Atlântico. E o povo já conhecia a fama que lhe valeu a alcunha. Por isso, o olhar de soslaio. As damas não olhavam nos seus olhos, por certo advertidas pela sociedade, do pecado que estariam consubstanciando a partir da cruzadela de olhares.

As putas tampouco lhe davam às vezes, advertidas por certo da enorme plausibilidade de serem transformadas em personagem de poemas escandalosos. De mais a mais, o Governo da Província era de tal modo corrupto, que a Metrópole estava a quinhentos mares de distância, como se o abismo geográfico fosse relativo para cada Governo de Capitania.

Mas o que fazer, se pela língua ferina havia sido degredado? E por não escrever, sentiu-se tão estrangeiro, que percebeu o que era claro diante de cada passo dado em falso: o degredo estava em não sibilar através da pena. Que não existe outra pátria para o homem senão o homem que se é e se compraz em o ser. E farto daquela merda toda, inaugurou a cidade de Recife:

Por entre o Beberibe, e o Oceano
Em uma areia sáfia, e lagadiça
Jaz o Recife povoação mestiça,
Que o Belga edificou ímpio tirano.

O Povo é pouco, e muito pouco urbano,
Que vive à mercê de uma linguiça,
Unha de velha insípida enfermiça,
E camarões de charco em todo o ano.

As Damas cortesãs, e por rasgadas
Olhas podridas, são, e pestilências,
Elas com purgações, nunca purgadas.

Que estava farto daquela cidade. Aumentaram a passagem do ônibus e decerto alguém ganharia com aquilo. Havia sido reprovado no vestibular. Era socialista. Anarquista. Ista, ista, ista. Qualquer coisa assim. As mulheres eram todas putas ( e dele dir-se-ia machista), o país não ia para canto algum (e dele dir-se-ia pessimista), minha mãe vai me matar (e dele dir-se-ia fatalista).
Foi quando descobriu uma revolta na Conde da Boa Vista. Revolta popular como acontecia nos livros de história. Contra o aumento da passagem de ônibus. Rumou para lá, e deixou-se pequeno na multidão que crescia. Um brado que crescia em si, contra o aumento, contra as putas, contra alguém que ganhava, contra o vestibular. O ônibus azul era tudo isso. E um ímpeto ancestral que vinha não se sabe da onde, talvez de mil e seiscentos, transformou a mão em pedra, a pedra em arma, o ônibus em alvo. Purgações nunca purgadas. O soco do policial foi na cabeça, e a língua sibilou contra a farda: - Enfia esse cacetete no cu, polícia filha duma puta.

A turba se evadia.

O policial ficou sem reação, pelas palavras gritadas escandalosas e inesquecíveis como se tivessem saído do inferno.

quarta-feira, janeiro 03, 2007

Colo, culto, cultus

Vejo com certa preocupação a indicação de Ariano Suassuna para a pasta da cultura do Governo do Estado de Pernambuco. É de estranhamento essa postura de general que não bota a mão na batalha, mas fica ao longe lançando diretrizes sobre o campo de guerra. Não quer a burocracia, quer linhas gerais. O grande problema do suporte à cultura é a burocracia. Ariano Suassuna tem entrado em choque com algumas das idéias mais interessantes que permearam a cultura pernambucana; Seu confete é em si mesmo, no movimento armorial e nos seus seguidores. Qualquer estética que fuja do padrão do popular/erudito, baseado na junção do medievo ocidental com a cultura da pedra, para ele é sub-cultura, quando muito.
É contra a colonização da cultura, e parece ignorar que culto, cultura e colonização partem da mesma raiz etimológica latina, e que há uma violência necessária na renovação cultural. A exclusão de movimentos como o que se convencionou a chamar de "mangue-beat", do som periférico do rap e de outras formas de expressão cultural surgidas a partir de uma dialética com o mundo (e com os Estados Unidos, porque não dizer...) possui um motor ideológico que não se irmana com uma política pública voltada para a valorização da cultura. Mas esse é o Ariano Suassuna das idéias. Será que o homem público, o gestor da res publica, vai abstrair os pré-conceitos e transcender as exclusões baseadas no seu quixotismo tão engraçado se não levado a sério?

terça-feira, janeiro 02, 2007



Expectativa de ouvir o Cê de Caetano. Confesso que havia lido algumas coisas antes da audição, o que só aumentava minha expectativa de adentrar em um universo de contestação, que é próprio de Caetano Veloso, e que venho acompanhando com uma certa delícia, desde quando ouvi - pela primeira vez, e tardiamente - o primeiro disco contemporâneo à aquisição, Circuladô (1992).
Caetano foi o responsável pela minha frustração de querer ser músico. Por isso, sempre haverá em mim uma simpatia por ele, o que me impede de escrever algo sobre o novo disco de forma imparcial. Acredito, todavia, que ninguém é imparcial quando fala de Caetano. Ninguém é imune a ele, para o bem ou para o mal.

E falo "mal" porque longe de ser uma unanimidade, como sói ocorrer com Chico Buarque (seu ser antagônico no imaginário do público brasileiro), Caetano é um dos compositores (e, sim, direi pensadores da cultura brasilera) que mais tem recebido tapas na cara dada à tapas. A geração imediatamente posterior à minha tem em Caetano um inimigo do novo, da cultura produzida no Brasil após o ocaso do que se chamava de "MPB". Por isso, Caetano é hoje o mais indie dos indies do Brasil . Ele é independente dos modismos que assolam a música, porque muito do que ele fizer será odiado pelo nicho consumidor do pop que ele mesmo ajudou a trazer para a cultura do país.
E é pelo fato de Caetano ser um índio-indie (perca o texto, mas não perca a piada) e assim ser taxado pelo próprio David Byrne que o Cê se torna um objeto delicioso para uma análise de blog.

Caetano se juntou com três meninos. A primeira impressão que se tem do disco é que não houve nenhuma reformulação no jeito de compor ou na estrutura linguística que é usual nas suas composições ("totais", "fatais" - utilizadas com ênfase em Rocks, típicas aliterações como o"Ganesh na coxa" na mesma música ou em "Um Sonho", o tema da absorção do negro da sociedade que foi um dos móveis de "Noites do Norte" disco autoral anterior), mas uma embalagem (não quero usar esse termo...) "antenada" com a música produzida no final da década de 80 pelas bandas que preparam o contexto do movimento independente que assola, atualmente, a cultura de massas. Assim, ecos do REM (principalmente do "New Adventures in Hi-Fi), do Pixies emolduram músicas bastante caetanas, que logo serão reconhecidas por aqueles que militam na obra do agora "Senhorito Veloso".

A segunda impressão tem ligação com o adjetivo lançado na última frase. Caetano repete um padrão que eu já havia observado em "Bicho Solto" do Djavan. Solteiro, pós-Paulinha, Caetano parece buscar o prazer do sexo pelo sexo, do amor adolescente-solar, sem coração e com muita mucosa. Esse "estado de coisas" teria levado à escolha do rock cru e bruto como moldura das suas canções? Ou houve uma escolha racional desse tema a partir da eleição do rock como moldura ainda vazia? Sem respostas para o paradoxo Tostines.

A terceira impressão tem ligações com o roxo da capa, cor que o próprio Caetano havia utilizado para a capa de "Uns". O roxo é ligado tradicionalmente à masculinidade e ao prazer, ou à metáfora da cor da pele mais escura. Tenho em mim que Caetano usou o roxo por ambas significações. As letras das músicas de "Deusa Urbana" e "Outro" sopram nos meus ouvidos essas impressões.

Assim, temos a tríade que Caetano nos imprime: rock-sexo-roxo. Um projeto na contra-mão das expectativas que não deveria nos surpreender vindo de Caetano Veloso, homem-velho-novo-homem que sempre se utilizou do inesperado para se lançar no mundo. Sempre esperamos o inesperado de Caetano Veloso; e isso basta para que ouçamos com atenção a Cê e reconheçamos Caetano quando ele passar por nós.

Feliz Ano Novo

Enfant Tèrrible


Esse ano-menino
me roubou um beijo
abriu a porta da geladeira
para ver o que lá havia
Desdenhou do que eu havia escrito:
“Está tudo velho”
e soprou um rock em meus ouvidos

Esse ano-menino
passou a mão em meus cabelos
me chamou de pai, de tio, de avô
Em meu colo chorou
o choro dos que nascem para o mundo
e que deixam a vida inflamar os pulmões

Esse ano-menino
dormiu cansado no sofá da sala
ainda do primeiro dia do ano
Aguardando que eu vá mima-lo,
contar-lhe histórias do futuro
para que ele possa se sonhar um ano bom