quinta-feira, agosto 19, 2010

No Zé Corninho

Amanhã eu não irei ao Zé Corninho.

Triste do homem que, às sextas-feiras, não possui um lugar sagrado para preparar sua ressurreição. Nós morremos um pouco da segunda até as onze horas da sexta. Um pouco por vez. Desfazemo-nos, cotidianamente, nas obrigações irremediáveis, na busca pelo conforto, na imagem calculada de homem bom. Isso é a nossa morte, ou a antecipação do sono definitivo. Mas às sextas-feiras, somos chamados a recuperar a nossa vida, nossa matéria perdida no mundo, e nos possibilitam o livramento das gravatas, dos prazos, do homem bom.
Meu marco de ressurreição das sextas-feiras tem sido o Zé Corninho. Esse recinto familiar que não possui placa, propaganda ou reclame na televisão. Um dos muitos meandros da capital que faz a sua fama sob o fogo das panelas quentes de dobradinha e de um bom bacalhau.
O nome do local é “Recanto dos Amigos”. A lenda de um patriarca já ido proveu com a alcunha de “Zé Corninho”. Eu me sinto mais à vontade o nomeando assim. Mas tão folclórico quanto a alcunha do lugar é a cara amarrada do filho Gustavo, a beleza da filha Carol, o gosto inesquecível que vem de uma cozinha pilotada pelo amor familiar, Deus nos permita a pieguice.
Não gosta de dobradinha, nem de bacalhau? Encomende o pernil de carneiro recheado. Também não gosta? Vá prá puta que pariu lá pelos lados do Tacaruna. Acho que seria isso, mais ou menos, o que Gustavo diria a você.
É comida de panela, de gente, de sexta. E após a primeira cerveja, você talvez ouça a voz dos anjos conclamando à ressurreição da carne, dos miúdos, da farinha e da pimenta. Bendito seja o homem que não tem medo de renascer.

...

Amanhã eu não irei ao Zé Corninho.

Da Avenida Agamenon Magalhães, entre na Rua Odorico Mendes (a do Clube das Pás). Depois de cruzar a Estrada de Belém, dobre na segunda rua à direita. Fica no fim da rua, do lado esquerdo.

domingo, agosto 15, 2010

Auto-retrato

André Souto Maior Mussalem, aos trinta e cinco anos de idade

É eficiente bancário de um banco privado onde as moedas são desnecessárias
Foi nomeado servidor público quando o mundo se acabou, e não havia quem requisitasse uma necessidade qualquer
Possui mãos grandes que colocou a serviço do rei da Inglaterra, recentemente decapitado por nunca ter sido um homem fiel

Escritor de célebres romances, foi tomado de um sentimentalismo inexplicado no século XIX,
ficando cego no século XX, quando a primeira bomba estourou
cresceu-lhe um tumor na alma que redundou em seu primeiro casamento
mas dá-se muito bem com as chagas que lhe mandou o Nosso Senhor

Dele diz-se invisível ao meio-dia quando o sol é mais claro
Dorme tranqüilo, às nove, no leito de um grande amor

sábado, agosto 07, 2010


O Homem Velho
(Caetano Veloso)


O homem velho deixa a vida e morte para trás
Cabeça a prumo segue rumo e nunca, nunca mais
O grande espelho que é o mundo ousaria refletir os seus sinais
O homem velho é o rei dos animais
A solidão agora é sólida, uma pedra ao sol
As linhas do destino nas mãos a mão apagou
Ele já tem a alma saturada de poesia, soul e rock'n'roll
As coisas migram e ele serve de farol
A carne, a arte arde, a tarde cai
No abismo das esquinas
A brisa leve trás o olor fulgaz
Do sexo das meninas
Luz fria, seus cabelos têm tristeza de neon
Belezas, dores e alegrias passam sem um som
Eu vejo o homem velho rindo numa curva do caminho de Hebron
E ao seu olhar tudo que é cor muda de tom
Os filhos, filmes, livros, ditos como um vendaval
Espalham-no além da ilusão do seu ser pessoal
Mas ele dói e brilha único, indivíduo, maravilha sem igual
Já tem coragem de saber que é imortal