quarta-feira, setembro 28, 2011

Interlúdio

Silenciosamente madruga e eu espero o espírito do meu pai

Materialista desenganado nos átomos, quase um ateu

É cedo e minha filha ainda não acordou e o mundo,

mais espectro do que forma táctil, finge ainda não existir.

Ouço o barulho das coisas ainda sem o ânimo do homem

As coisas que dialogam a inexistência momentânea do homem que dormiu

Mas o espírito do meu pai não vem, não me dá a mão:

Silêncio, madrugada, abandono

O silêncio não vem dos destinos esmagados no peito, das mágoas

Vem da solidão dos deuses inexistentes e que se chamam automóvel e internet

Chama-se memória esse deus destronado do tempo presente e que dói

E em minha carne com sono fica a espreita da revelação.


Como gostaria de ver para além da matéria

O espírito do meu pai chegando no meio da sala

Com um dedo apontando, grave, os meus pecados, minhas misérias

Enquanto os mundos da minha infância se refariam no súbito do nada:

Uma luz que faria cioso o infinito apagaria o pouco sol dessa manhã

E inundaria os átomos, o quase ateísmo, a ausência

Os olhos do meu pai cansados, as mãos graves, já pensas

O peso de outros mundos nos ombros, embora visível aos meus olhos incrédulos


Mas o espírito do meu pai não vem

E cedo o homem já acorda

Os automóveis começam a ser ligados, os computadores acordam seus donos

como os antigos animais de estimação

Os barulhos da metafísica perdem a chance, vencidos pelos diálogos das coisas

O sino da igreja convoca, na missa da televisão

O pastor maquiado que prega, Deus está chegando

E eu solitário, quase crente e humano

Já posso tocar o abstrato da minha imensa solidão

sábado, setembro 03, 2011

MOMENTO GASTRONOMIA: INFÂNCIA



A infância é um lugar fechado dentro da memória das gentes, uma rua que só existe à noite, sem luz, sob uma chuva fina. Mas existe, está lá, é só querer visitar. Foi em uma visita não programada à minha infância que tive a oportunidade de rever o meu alicerce gastronômico. Colocado ali, por duas pessoas que contribuíram para o meu interesse sobre o gosto que nos invade a língua e adentra pelo sonho.

A primeira delas, minha avó paterna. Acho que toda criança guarda a lembrança da comida da avó. Ela é o lumiar afetivo que nos guiará ao longo da nossa vida em forma de sopas, massas, doces, bolos. Não sou diferente dos outros. Minha avó era o ponto de encontro de diversas nações: a portuguesa, na sua origem, a palestina, pelo seu casamento, a italiana e a judaica pelo convívio bastante comum, nas comunidades pobres imigrantes, na primeira metade do século XX. Dentre tantas coisas que eu devo a ela, devo o cosmopolitanismo que permeia a minha fome. Fome curiosa, que não tem medo de texturas, de cheiros, de origens. Desde muito cedo aprendi a conviver com nascedouros étnicos diversos: o kibe, os legumes e folhas de parreira recheadas com arroz e carne (os famosos charutinhos), o marmaone de trigo e caldo de galinha, pratos de origem palestina, que evocavam o nome do meu bisavô. O varenike judaico que ladeava a comida árabe sem a necessidade de qualquer acordo internacional. O famoso ravióli que levava o molho de três carnes diferentes, aprendido diretamente com os italianos que vieram aportar por aqui. Mas havia o toque que só os netos conhecem, metafísico, sobrenatural a dar sabor e vida a esse mundo redescoberto a cada mordida em flor e gozo. Feliz eu sou, menino criado por vó.

A segunda delas, Edmilson, cozinheiro da minha madrinha Diva, nos confins de uma Caruaru distante, na época que São João não era desfile de moda. Edmilson era egresso do Guanabara, restaurante famoso da Caruaru antiga, de propriedade da minha madrinha e do falecido marido que eu não cheguei a conhecer. Veado tímido, calado, submisso à personalidade forte de Diva Julião, delicadíssimo e sensível como poucas mulheres. Mas era um gênio. Sem qualquer escolaridade, sequer sem saber ler ou escrever, colocava qualquer grande chef no bolso com sua intuição que eu imagino também ser sobrenatural. Fazia um arroz de pimenta amado igualmente por mim e por meu pai. A sua macarronada era esteticamente refinada e de sabor místico. Fazia um carpaccio de carne de charque: fatiada finíssima, crua, temperada com limão. O seu creme catalão era inigualável, mesmo na Espanha nunca comi nada igual. Certa vez, meus pais fizeram um jantar para o cônsul da França e comitiva; dentre os ilustres: Gilberto Freyre. Minha mãe não teve dúvidas, trouxe Edmilson de Caruaru e deixou ele se assenhorear da cozinha e das nossas expectativas. Os franceses, ao final do jantar, queriam levá-lo embora. Mas Edmilson era como o Touro Ferdinando: enorme, forte, genial, mas só queria contemplar as flores no seu cantinho de interior.

Como era bonita a rua da minha infância. O diabo carregue quem me pôs velho no Mundo.