Silenciosamente madruga e eu espero o espírito do meu pai
Materialista desenganado nos átomos, quase um ateu
É cedo e minha filha ainda não acordou e o mundo,
mais espectro do que forma táctil, finge ainda não existir.
Ouço o barulho das coisas ainda sem o ânimo do homem
As coisas que dialogam a inexistência momentânea do homem que dormiu
Mas o espírito do meu pai não vem, não me dá a mão:
Silêncio, madrugada, abandono
O silêncio não vem dos destinos esmagados no peito, das mágoas
Vem da solidão dos deuses inexistentes e que se chamam automóvel e internet
Chama-se memória esse deus destronado do tempo presente e que dói
E em minha carne com sono fica a espreita da revelação.
Como gostaria de ver para além da matéria
O espírito do meu pai chegando no meio da sala
Com um dedo apontando, grave, os meus pecados, minhas misérias
Enquanto os mundos da minha infância se refariam no súbito do nada:
Uma luz que faria cioso o infinito apagaria o pouco sol dessa manhã
E inundaria os átomos, o quase ateísmo, a ausência
Os olhos do meu pai cansados, as mãos graves, já pensas
O peso de outros mundos nos ombros, embora visível aos meus olhos incrédulos
Mas o espírito do meu pai não vem
E cedo o homem já acorda
Os automóveis começam a ser ligados, os computadores acordam seus donos
como os antigos animais de estimação
Os barulhos da metafísica perdem a chance, vencidos pelos diálogos das coisas
O sino da igreja convoca, na missa da televisão
O pastor maquiado que prega, Deus está chegando
E eu solitário, quase crente e humano
Já posso tocar o abstrato da minha imensa solidão