terça-feira, abril 17, 2007

A TERCEIRA GUERRA MUNDIAL

Muitos perguntavam para o Sr. David porque ele insistia morar perto da Kurfürstendamm; O aluguel do imóvel é caro e não existem as facilidades requisitadas para alguém daquela idade.
O que o Sr. David não confessava é que havia certo prazer em ser vizinho de um homem como Günter Grass; Não que o Sr. David fosse amigo ou coisa que o valha daquele senhor sempre acompanhado pelo cachimbo; sequer havia lido suas obras e seu teatro do absurdo. Só gostava de pensar que, na sua solidão, estava acompanhado de uma mente que havia ajudado a construir aquele tempo.
Entre eles havia o espaço de um cordial “bom dia”. E essa possibilidade de uma conversa maior, estancada pelos afazeres de ambos, era o suficiente para o gáudio do Sr. David.
As confissões de Günter Grass atingiram, de um modo ou outro, toda a classe intelectual alemã. Mas não tenho dúvidas que o Sr. David sentiu de modo desproporcional a entrevista concedida ao 'Frankfurter Allgemeine Zeitung', onde o Sr. Grass afirmou que foi voluntário ao servir a tropa de elite nazista.
No dia seguinte à publicação, o Prêmio Nobel de Literatura de 1999 encontrou o Sr. David na porta de casa e repetiu o rito do “bom dia”. Não houve resposta. Naquele mesmo mês, não havia mais vizinhança.

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Foi uma surpresa para Lindonéia encontrar Dona Clara na audiência pública convocada pelo Ministério Público. Lindonéia sempre reputou Dona Clara como uma pessoa de bem e fazia questão de levar suas amigas para apreciar o acarajé vendido na porta da sua Igreja-Assembléia.
Estando Dona Clara naquela audiência, ficou claro para Lindonéia que a vendedora de acarajé era íntima do terreiro de Pai Adão e, portanto, também responsável pelos cantos que invadiam e violentavam os louvores ao Deus único.
A Promotora não sabia como resolver as divergências de uma e de outra denominação religiosa. Não se sabia qual culto havia se estabelecido primeiro naquela circunscrição; os livros, as leis, a Constituição não ofereciam melhor resposta do que um oráculo de previsões vagas e imprecisas.
Ao sugerir o respeito mútuo e a compreensão às diferenças, a Promotora viu, pelo rabo do olho, Lindonéia passar na frente de Dona Clara e cuspir no chão, demarcando o limite entre um e outro deus.

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Eu sinceramente havia esquecido o motivo daquela briga. Mas não ia abrir mão daquele silêncio. Havia um motivo ainda que esquecido entre a xícara da noite anterior e o marcador de livro lançado no chão.
Não olhei para ela. Coloquei a camisa, liguei o ar condicionado no máximo e deitei com as minhas costas voltadas para a coluna arqueada dela, que tecia uma muda conversa com o espaço de ar entre nós.
Não pedi desculpas. Não esperei desculpas dela. Eu segurava aquele silêncio como troféu de uma corrida em que não havia certeza de vencedor.
Fechei os meus olhos e quase pude ouvir as sirenes do bombardeio antiaéreo invadindo a cidade.