Há algum tempo queria voltar. Estava ocupado com coisas terrenas, e os bens da lavoura celeste cresceram desmesuradamente no meu esquecimento.
Enfim...à crônica
Free, João do Morro, Free.
João do Morro de hoje é um sambista na última acepção da palavra. Nasceu no morro. Convive com a mesma situação que, nos fins do século XIX, promoveu a inclusão na classe média do ritmo africano que se irmanava com a modinha. Deu-se ao ritmo o nome de samba, (samba do morro de ontem). Foi gravado nas Casas Edison, a primeira gravadora do Brasil.
O disco de João do Morro de hoje foi gravado a custos baixos, traz a linguagem da periferia recifense e caiu nas graças da classe média "moderna".
O samba do morro de ontem, quando surgiu, era uma picardia só; chegou denunciando a desmoralização da polícia do Rio de Janeiro incapaz de conter a jogatina no Largo da Carioca: "O chefe da polícia, pelo telefone, manda me avisar/ que na Carioca há uma roleta para se ganhar".
João do Morro de hoje insiste na primeira linha do samba, tantas vezes reafirmada por Noel Rosa, de noticiar o que o subúrbio lhe traz como ambiente. Noticiar, eu insisto. João do Morro é um cronista que interpreta o que lhe rodeia.
O samba do morro de ontem fazia a crônica das relações amorosas e sociais, despreocupado com o "dever ser"; como João da Baiana, que noticiava os intercursos sociais no começo do século XX "Então não bula na cumbuca, não me espante o rato/Se o branco tem ciúme, que dirá o mulato/Eu fui na cozinha pra ver uma cebola/E o branco com ciúme de uma tal crioula/Deixei a cebola a cebola, peguei na batata/E o branco com ciúme de uma tal mulata"
João do Morro de hoje é cronista de um modo natural, sem intelectualismos, sem direções ideológicas. Reinterpreta os temas que gravitam ao redor dele de maneira jocosa, reafirmando a vocação do brasileiro para a picardia, como já havia notado Gilberto Freyre. Observou uma relação patrocinada entre um homoafetivo e um rapaz que se aproveita de tal situação e transformou em samba.
O samba do morro de ontem também transformava em samba relações patrocinadas escandalosas, onde o sexo considerado "mais frágil" se dispunha a custear uma relação, transformando o amor em caso de polícia: "Quando a polícia vier e souber/ quem paga casa pra homem é mulher" (novamente João da Baiana, gravado por Clementina de Jesus).
A música de João do Morro de hoje tem acentos preconceituosos, sem dúvida. Mas João do Morro não é preconceituoso. É só ouvir a música "Camarote Girl" em que ele se declara um "simpatizante" da luta homoafetiva. João do Morro não disse qualquer mentira, noticiou um caso que poderia acontecer em qualquer tipo de relação. O viés envernizado da relação foi o mote para a música jocosa.
Outras músicas do morro de ontem também possuem acentos preconceituosos; "Teu cabelo não nega, mulata" dos Irmãos Valença, modificada por Lamartine Babo é um exemplo inegável de um preconceito que perdeu o sentido com o tempo. Afinal, todos cantamos "mas como a cor não pega, mulata/mulata eu quero teu amor", sem notarmos a pecha preconceituosa da letra. "Teu cabelo não nega, mulata" é uma das músicas mais executadas nos carnavais de hoje.
Chegará o dia em que não haverá qualquer viés jocoso em qualquer tipo de relação entre homens e mulheres. Mas este dia não será abreviado através de censuras disfarçadas de coisas-dignas.
Proibir uma música, interpretando-a de uma maneira descontextualizada é reiterar a censura de ontem com novas bases de legitimação para o hoje. Há um perigo ínsito nessa atitude muito maior do que deixar a execução do samba se perpetuar enquanto se aguarda o dia em que "frango" será um termo histórico sem qualquer sentido para nós homens iguais e diferentes. Quem tenta proibir a música de João do Morro não entende do samba de ontem, nem do morro de hoje.