Aí, deu-se que ontem eu estava assistindo a um documentário sobre João Cabral de Melo que abordava sua relação com a Espanha. Com Sevilha. Um cheiro de taco subiu pela sala e eu fiquei vermelho. Via por causa do poeta ou era Sevilha que prendia meus olhos dormentes pelo domingo que ia? Mas era possível separar João Cabral de Melo Neto de Sevilha?
Enchemos a boca para adjetivá-lo pernambucano, com os orgulhos que prezamos desde nossa gênese, mas João Cabral de Melo Neto não era pernambucano. Era de Sevilha.
De Sevilha porque não somos de onde nascemos, somos (pertença) de onde somos (existência). De onde nos descobrimos. Há uma pátria oculta em nós, que se aparta - tanta vezes - da nossa geografia e que irrompe quando a inexatidão do solo se equaliza em uma viagem e aí dizemos: é aqui que eu sou.
Eu sou de Recife. E já estive em tantos lugares. Mas em qualquer lugar do Mundo, eu trajo esse mar de mortes e esse povo mambembe que come caju. Acontece que minha pátria oculta coincide com a geografia plantada sob meus pés, para o bem ou para o mal.
Mas do documentário, deixai que o diga: a parte que me fez rir à beça é essa. Quando João Cabral - em depoimento - rememoria um acontecido na casa do embaixador na Suíça, quando do auge da Bossa Nova. O amigo Vinícius de Moraes cantava baixinhos coisas lindas: "o coração, o coração, ah, o coração..." E João Cabral lá do fundo: "Vinícius, você não tem outra víscera para cantar não? Se não for de amor tu não sabes né?..."Para gargalhada geral, inclusive a minha.
E aí entra a filha de João Cabral lembrando do que o pai dizia: "minha filha, devemos fazer poemas sobre o copo d´água". Ofício difícil esse. Belo documentário.
POEMA DE COISA POUCA
Um copo d´água:
paz da carne que suor transpira
sossego da saliva
que irmanada nas líquidas víceras da coisa translúcida
adentra infinita na seca da boca
e renova a vida