“Depois de 33 anos desfilando pela Rua da Concórdia, o Galo da Madrugada estreou na Dantas Barreto. E fez bonito. Seus súditos leais lotaram o Centro do Recife com risos e fantasias. Nos camarotes, autoridades, artistas e muita gente bonita.”
Chamada do Jornal do Commercio de 06 de Março de 2011
Eram duas festas no período momesco: o entrudo, de tradição ibérico-portuguesa, era considerado agressivo pela sua permissividade, quando pacatos senhores saiam de suas casas, munidos de limões de cheiro, farinha, ovos e se misturavam à turba, emporcalhando a cidade com sujeira, suor e risos. Havia o entrudo familiar, que designava a brincadeira restrita entre as famílias, mas que, freqüentemente, descambava para a mistura de classes, como atestava Joaquim de Manuel Macedo, autor do livro “A Moreninha”, em 1871.
A outra festa, o carnaval, foi trazida pela corte da Imperatriz D. Teresa Cristina a partir do seu casamento com o Imperador D. Pedro II, em 1843. Trouxe junto com ela músicos italianos que importaram os arlequins, os pierrôs, as colombinas e o carnaval de Veneza, das fantasias elaboradas, restrito aos bailes, aos convites reais. Como tratou Luiz Felipe de Alencastro, no seu ensaio “Vida Privada e Ordem Privada no Império”, “Separou-se a festa da rua, popular e negra, embora de origem portuguesa – o entrudo -, da festa do salão branco e segregado, o carnaval”.
Em algum momento, entretanto, entrudo e carnaval passaram a designar a mesma festa e, por influência da música do século XX, do samba carioca, do frevo pernambucano, da sua variação, o frevo baiano, dos grupos ritualísticos negros e índios, a rua cada vez mais foi vencendo o salão. A festa de rua foi nomeada de carnaval, embora fosse mais próxima do entrudo. Carnaval também era a festa dos clubes (substitutivos dos salões e das sociedades carnavalescas) da alta classe social, mas restrita, ilhada no Sudeste e no Sul do país.
Na década de 80 e 90 do século XX, e principalmente no início do século XXI, o Estado percebeu que o carnaval de rua era uma fonte bastante interessante de captação de recursos, principalmente pelo crescente interesse das grandes empresas (consolidadas pela estabilidade econômica) em investirem no manancial quase infindo da alegria de rua, sempre possível de ser catequizado pelo marketing.
Assim, autoridades, artistas, e pessoas de importância, que evitavam o carnaval de rua, por causa do descontrole de ânimos que caracteriza o entrudo, passaram a olhar com novos olhos a multidão anônima e feliz, que se acotovelava absorta na alegria circunstancial dos dias de folia. Só que a freqüência das pessoas revestidas pela importância do cargo, da mídia, da arte não podia conviver com o anonimato da turba enfurecida pela felicidade: era preciso reinventar o espaço da rua, para que se permitisse uma segregação branda, quase democrática, sub-reptícia, da felicidade. A sua felicidade termina onde a minha começa. Gente bonita junta acotovelando-se refrescada pelo ar-condicionado e olhando de cima a gente sem beleza, sem nome, sem importância.
Os camarotes representam a invasão no animus do carnaval sobre o entrudo. A segregação que antes ocorria nos salões e nos bailes passa a ocorrer na própria rua, no próprio espaço democrático. Invade com tanta força que coloniza até as classes menos abastadas, pois o carnaval de camarote passou a ser um produto industrializado para classe “c” se diferenciar da classe “d”. Mimetizados os pierrôs de academia, as colombinas do reality show, os arlequins da política, importados de um país distante que nunca vingou aqui em baixo, nos tristes trópicos.
O espaço da rua categorizado como se fosse um imenso espaço privado, colonizado por palafitas de luxo, de quase-luxo, de anti-entrudo, de pseudo-carnaval.