terça-feira, março 08, 2011

carnaval e herança


Foi pela mão do meu pai que eu conheci o carnaval. Justamente por ele, um dos homens mais anti-carnavalescos que eu conheço. Avesso às multidões, ao calor, ao barulho, apraz-lhe um livro de guerra, um bom filme, um bom almoço nos dias de folia. Eu também sou pacato, dou-me muito bem com meus botões, com meus discos, com minhas pesquisas. Mas nesses dias milagreiros de são-ninguém, tomado por uma inexplicável turba de bichos-carpinteiros, corro para as ruas antigas do Recife e de Olinda, não sei quem sou, nem prá onde vou, só sei que tudo acaba na quarta-feira.


Acuso beneficamente o meu pai dessa imensa responsabilidade. Tomava-me pela mão, ainda bem criança, como salvo-conduto, e me levava para o bloco da Turma da Jaqueira, cria dos funcionários e motoristas da Fundação Joaquim Nabuco, órgão federal em que meu pai, por vários anos, exerceu a função de superintendente sob o comando de Gilberto Freyre (e posteriormente de seu filho, Fernando Freyre). Em meados da década de 80 do século XX, a Turma da Jaqueira (co-denominada de “Segurando o Talo”) era uma troça ainda pequena, que seguia pela Avenida 17 de Agosto, até a casa de Gilberto Freyre (atual Fundação Gilberto Freyre). A troça terminava na Associação dos Servidores do Instituto Joaquim Nabuco. Eu, menino, sob os acordes do frevo, feliz, suado, juntando confetes no chão. Meu pai acompanhava ao longe, sob distância segura.


A Turma da Jaqueira é, hoje, um bloco imenso, que arregimenta mais de sessenta mil pessoas pelas ruas de Casa Forte, por certa ironia do destino, meu atual endereço. Não acompanho mais o bloco, mas decerto que meus passos estão ainda marcados no itinerário seguido pelos foliões mais novos, seguidores antigos, gente que se irmana a mim pelo menos na minha imaginação.


Desde essa época passada, o frevo não saiu mais de mim. Um dia eu hei de morrer, como todo bicho que pula, mas essa alegria há de se perpetuar nos meus filhos. Tomo eu, pela mão, Maria Eduarda e mostro a ela a riqueza dessa festa que desafia toda lógica, como a própria humanidade. Talvez o carnaval seja a mais humana de todas as festas, com as suas contradições. Dou a Maria Eduarda esse quinhão, essa parcela inexplicável da minha conjuntura legada pelo meu pai. Não sei se ela amará o carnaval como eu amo, mas abro a minha mão, como o meu pai o fez, para que ela tenha uma escolha. E possa, quem sabe, escolher o transitório sem abrir mão da permanência.


Hoje, terça-feira gorda, é aniversário do meu pai.