sábado, abril 02, 2011

As mãos do meu pai





As mãos pensas de meu pai na sala a murmurar em gestos o cansaço do corpo
Tateiam em busca de outras mãos que já não acenam mais
Quantas guerras, meu Deus, quantos exércitos dizimados
Cabem naquele gesto que desenha sem potência o imponderável?


Maré de sangue e vento e vísceras e um grito pende do tato – mamãe,
O resto é nuvem de pássaros abatidos por tanques de guerra e os meus olhos de menino a não crer na própria história, meu Deus, meu Deus
Quantos deuses mortos, quantas valsas perdidas no meio da sala cabem naquele gesto que firma no espaço o vazio da minha herança?


As mãos pensas de meu pai na sala e as réplicas da França conquistada que lhe pendem dos dedos
ofertam-me a crueldade dos campos de batalha e o sorriso fácil dos diplomatas que dividiam entre si o resto do século
e a oferta já é pouca, por não sobrar a esperança da vitória depois da noite
Quantos cadáveres, meu Deus, quantos tios amputados
Cabem naquele gesto que escava no ar a sepultura dos homens fortes?


João, José, Celina, as armas prontas para um combate que já não existe mais
O resto é guerra invisível travada a partir na terra suja das unhas, na carne restante dos molares
Quanto do meu silêncio, nascido na contramão do combate
cabe no gesto de perplexidade perante a nova cosmogenia do Cais?


Elas chamam por algo, as mãos pensas do meu pai, e esse algo tarda a chegar
Não sei bem se pássaro ou finitude,
se começo da praia para a onda, se início do asfalto para o onde
Os corpos se amontoam no vão do hiato e fica este gosto de pólvora
a sobejar na língua morta e insepulta no horizonte da boca