Quando comecei a postar assuntos
relativos à gastronomia, aqui no Fúria,
fiz uma opção por compartilhar com meus três leitores pequenos oásis da
boa mesa, resistentes no imenso deserto dos modismos recifenses, amplificados pelo
status de “polo” angariado já há alguns anos. O primeiro post sobre o assunto era bem claro: lugares acessíveis. Assim
comentei os bons momentos passados por mim no Bode Dourado, no Restaurante da
Mira, no Bar do Luna, no Zé Corninho, no Mocó. Escreverei ainda sobre o Bar do
Cabo, sobre o Bar de Edson, sobre tantos lugares que servem de contraponto ao
propagado novo da gastronomia recifense (sem nenhum demérito ao novo, que
também tem o seu lugar ao sol).
Mas hoje, vou abrir um parêntese.
Não vou falar de um lugar que se apresenta como o recanto da informalidade; não
vou falar de um lugar que faz comida de avó, ou de uma cozinheira aglutinada
pela colher de pau ao retrato de família, e que fazia um pirão dos deuses, a
ponto de receber o sobrenome da família pelo pirão e não pelo sangue (e
fodam-se os politicamente corretos que desinterpretam o ethos brasileiro).
Vou falar do Leite.
O Leite é propagado como o
restaurante mais antigo do país. Briga com o centenário e carioca Lamas por
este título. Para mim isso é desimportante como as pretensões que fazem parte
da mitologia chamada pernambucana (Pernambuco é a Itu dos títulos honoríficos).
O Restaurante Leite é antigo e
passou por diversas titularidades, do fundador Manoel Leite, ainda no século
XIX, a um dos membros da família Dias (que comanda boa parte dos pontos
gastronômicos da cidade).
Muita gente importante já falou
sobre o Leite. O Leite, aliás, é um lugar de pessoas importantes.
Desembargadores, políticos, intelectuais fazem do restaurante uma extensão do
gabinete, do parlamento, do bureau. O
almoço acaba sendo um detalhe em meio aos olhos que se cruzam tramando o futuro
dos desimportantes, dos alheios ao poder e dos mendigos que ficam na praça
defronte, embriagados pela cola ou estuprados pelo crack.
É preciso, todavia, que um
pernambucano sem complexos de infinito, sem mandato outorgado pelo povo ou dono
de algo, diga o que realmente importa do Leite.
O Leite tem uma comida
maravilhosa. É isso que importa.
Apesar do ambiente aristocrático,
o Leite não se aventura nas modernidades da fusion
food, ou dos malabarismos químico-gastronômicos que assolam os restaurantes
ditos contemporâneos. Tampouco sai do berço pernambucano para procurar raízes e
temperos nos mercados populares dos rincões mais ignorados do país.
É comida antiquada no melhor
sentido da palavra. Tudo é feito de forma artesanal, na lentidão do bonde, do
relógio de algibeira.
O churrasco de filé. A garoupa. O
cabrito. O bacalhau bem servido. Os pastéis de belém. A Rabanada com vinho do Porto.
Meu avô levava meu pai. Meu pai
me levava. Eu levo Maria e Filipe. Um cordão de afeto e fome se estende para
além das convenções sociais, dos ternos, dos sobrenomes. E é por isso que falo
do Leite aqui, porque a saudade dói tanto quanto a fome.
Lá dentro, no salão do Leite,
algo de aristocrático do século XIX ficou congelado, algo que não pode ser
tangenciado pelos movimentos libertários, talvez o melhor de uma época em que
as pessoas se diferenciavam por pequenos e fúteis detalhes.
Pelas revoluções quedamos todos iguais. Pela boa mesa, tornamo-nos irmãos. A aristocracia do Leite é apenas uma fantasia de um festim de Vatel.