terça-feira, setembro 20, 2005

Comecinho do conto

Fantasma



Ser desembargador é exatamente oposto a ser fantasma. Desembargador procura luzes, sol, gente, multidão. Fantasma vive de sombra, medo, de inexistência intuída. Assim era o Desembargador X, gente pública que como seus pares não pertencia mais a si, mas a consciência coletiva de quem o via passar e apontava-o com dedo em riste: “Desembargador X”. E isso lhe comprazia. Dava-lhe a glória cotidiana conquistada a ferro, fogo e política, no garimpo que lhe tomou os últimos anos da titularidade de uma vara comum escondida no fórum da capital.
Esse árduo trabalho de cativar seus superiores justificava (para si) a vaidade diagnosticada no bem-estar de ser apontado no espaço que era seu: o público. Gente privada é diferenciada pelo sobrenome: o “tal” do “fulano”. Sua diferenciação advinha da titularidade outorgada pelo Tribunal de Justiça “Desembargador fulano”, ou, no caso, “Desembargador X”. Até sua família findou-se titularizada: esposa do Desembargador, filhos do Desembargador. E isso também lhe comprazia.
Havia até um certo prazer perverso em vestir a toga, em calcular a altivez do olhar dispensado aos que assistiam ao seu julgamento. Um gozo não liquefeito, mas etéreo como as luzes que eram atraídas pela sua presença emblemática. “Emblemática”: o Desembargador X gostaria disso.
Definitivamente, os fantasmas são diferentes. Contou-me certa vez Josefina Minha Fé que os fantasmas não gostam de pessoas porque lembram a eles que a vida vivida é aquela vivida na carne. Por isso são agressivos com gente viva, quebram louças, rangem dentes, chamam nomes que não lhes eram permitidos chamar quando eram de carne. Mas como ninguém acredita muito em fantasmas, eles vão resignados para o canto mais escuro da casa e evitam o contato direto com aqueles que um dia serão seus pares. Ficam ensimesmados em seu espaço privado, construído no alívio de sua invisibilidade a olhos comuns.
Voltemos, por ora, ao Desembargador X. Seu fim de tarde era sempre sentado no seu gabinete, sala privativa para aliviar as pressões de ser público, tomando um chá de arnica preparado por uma das suas funcionárias mais antigas, uma parenta sua, que tinha a função de filtro: filtrava pessoas de importância das sem-importância quando o Desembargador estava livre para recepções. Filtragem essa não muito eficiente, pois, um dia, apareceu por lá um certo advogado que tinha nas mãos um importante processo, cujo relator era o Desembargador X.