Compartilho com Shylock essa resignação. Entendemo-nos com os olhos que algo natural mas singelamente revolucionário acomete nós dois. Tal indigesta compreensão se deu na última visita de Shylock à veterinária, quando a sentença foi proferida: “Shylock não é mais um jovem, ele precisa de comida para gatos maduros castrados”. Essa sentença não foi apenas para o meu gato. Foi para mim também. Naquele momento, ao olhar Shylock como um ser vulnerável ao tempo, percebi que estava – do mesmo modo – na metade da vida expectável para uma criatura urbana, que já nasceu, que já cresceu e que não possui novas formas verbais para descrever o percurso da vida até a chegada da indesejada das gentes. Nel mezzo del cammin di nostra vita.
Eu e Shylock somos dois maduros castrados. Shylock é castrado no sexo. Eu sou castrado no transborde da vida. Shylock foi castrado para não destruir a casa em busca de uma fêmea. Eu fui castrado para me tornar exatamente aquilo que a sociedade pede de um macho maduro: provedor, obrigado, circunspeto.
Shylock não consegue mais subir na mesa. Eu ando me esquecendo de compromissos. Shylock não dá três passos sem parar e suspirar. Eu não tomo ações sem pensar nelas cinco a seis vezes (riscos e derivativos). Shylock não tem mais paciência para tomar banho. Eu também não.
Toda vez que sento no sofá, ele se aninha perto de mim, como se dissesse: “E aí, irmão, vamos fazer o quê nesse primeiro dia do resto de nossas vidas?” Eu olho para ele com alguma esperança e digo: “Ora, Shylock, foi justamente nesse momento que Virgílio apareceu para Dante e o levou para conhecer o infinito; foi justamente nesse momento que a máquina do Mundo se abriu para Carlos Drummond de Andrade. Quem sabe não nos aparece algo que o valha?” Ele suspira meio incrédulo e fica aguardando algo que nos contamine de vida.
Enquanto isso, no silêncio além de nós, Maria Eduarda dorme no ventre da mãe.
segunda-feira, julho 23, 2007
quarta-feira, julho 18, 2007
O poema olha para a vida
Vivo
meu instante final e é como
se vivesse há muitos anos
antes e depois de hoje,
uma contínua vida irrefrável,
onde não houvesse pausas, sonos,
tão macia na noite é esta máquina e tão facilmente ela corta
blocos cade vaz maiores de ar.
Sou vinte na máquina
que suavemente respira,
entre placas estelares e remotos sopros de terra,
sinto-me natural a milhares de metro de altura,
nem ave nem mito,
guardo consciência de meus poderes,
e sem mistificação eu vôo,
sou um corpo voante e conservo bolsos, relógios, unhas,
ligado à terra pela memória e pelo costume dos músculos,
carne em breve explodindo.
Ó brancura, serenidade sob a violência
da morte sem aviso prévio,
cautelosa, não obstante irreprimível aproximação de um perigo atmosférico
golpe vibrado no ar, lâmina de ventono pescoço, raio
choque estrondo fulguração
rolamos pulverizados
caio verticalmente e me transformo em notícia.
(Morte no Avião - Carlos Drummond de Andrade)
meu instante final e é como
se vivesse há muitos anos
antes e depois de hoje,
uma contínua vida irrefrável,
onde não houvesse pausas, sonos,
tão macia na noite é esta máquina e tão facilmente ela corta
blocos cade vaz maiores de ar.
Sou vinte na máquina
que suavemente respira,
entre placas estelares e remotos sopros de terra,
sinto-me natural a milhares de metro de altura,
nem ave nem mito,
guardo consciência de meus poderes,
e sem mistificação eu vôo,
sou um corpo voante e conservo bolsos, relógios, unhas,
ligado à terra pela memória e pelo costume dos músculos,
carne em breve explodindo.
Ó brancura, serenidade sob a violência
da morte sem aviso prévio,
cautelosa, não obstante irreprimível aproximação de um perigo atmosférico
golpe vibrado no ar, lâmina de ventono pescoço, raio
choque estrondo fulguração
rolamos pulverizados
caio verticalmente e me transformo em notícia.
(Morte no Avião - Carlos Drummond de Andrade)
quarta-feira, julho 11, 2007
CONCÍLIO VATICANO
Por decreto papal fica assim determinado
que Cristo não pode jamais se transformar em elefante
visitar a Índia e se compadecer das castas
não poderá adotar o nome de Shiva
Por decreto de Sua Santidade, o Papa
fica Cristo proibido de festejar nos terreiros
de aparecer vestido de branco e comer pipoca
com seus pares. Que ele não se chama Oxalá
e Oxalá é coisa dos negros
Que esteja ressaltado, nos termos dessa norma
que estão fora do benefício da piedade
proibidos de comungar da face concedida
apartados do sacrifício final
os protestantes, porque protestam
E assim determinou o Papa, nesse Concílio ensimesmado
que Cristo ande na linha
que seja fiel com seus ministros
nada de sorrir para quem não vai à missa
ou ensinar filosofia nas universidades
Cristo tem que ficar
pendurado no seu lugar por direito
crucificado eternamente
eternamente dolorido
lá na igreja católica, o monopólio do menino
que achava que tinha vindo ao mundo para todos
que Cristo não pode jamais se transformar em elefante
visitar a Índia e se compadecer das castas
não poderá adotar o nome de Shiva
Por decreto de Sua Santidade, o Papa
fica Cristo proibido de festejar nos terreiros
de aparecer vestido de branco e comer pipoca
com seus pares. Que ele não se chama Oxalá
e Oxalá é coisa dos negros
Que esteja ressaltado, nos termos dessa norma
que estão fora do benefício da piedade
proibidos de comungar da face concedida
apartados do sacrifício final
os protestantes, porque protestam
E assim determinou o Papa, nesse Concílio ensimesmado
que Cristo ande na linha
que seja fiel com seus ministros
nada de sorrir para quem não vai à missa
ou ensinar filosofia nas universidades
Cristo tem que ficar
pendurado no seu lugar por direito
crucificado eternamente
eternamente dolorido
lá na igreja católica, o monopólio do menino
que achava que tinha vindo ao mundo para todos
segunda-feira, julho 09, 2007
quarta-feira, julho 04, 2007
O CÍCLOPE
Lanço-me ao mundo como quem
por nada se abate no meio do caminho
mas refaço (na mente, ora sozinho)
a alegria de ser bandeirante
dessa estrada normal, fronte e perene,
como se fosse eu navegante
do navio do mundo, esse rente.
Mas antes de cruzar a minha rua
que é porto desse mar inexistente
bem no ápice da glória de ser
homem livre, imortal, transcendente
um gigante me pára e me estanca
com uma carranca de olho-só reluzente
E me olha com o olho bem vermelho
e me diz que o mundo a ser descoberto
é para quem, em si circunspecto,
detém a passividade do que sonha
e não do que se lança ao mar (sob glória)
com velocidade na alma sempre risonha
“Eis que me chamam semáforo ou farol
e eu sou a lembrança sempre presente
de que até mesmo o sol (em seu conseqüente
caminho), ao fim do dia simplesmente
cessa; interrompe-se azul no fim do horizonte
para que se possa dele dizer ‘de si, recomeça’
pare, por isso, e se contenha
espere que o tempo do mundo sobrevenha
e só assim, parado, poderás partir”
Eu, que ao meio do caminho não me abatia
nem por nada parava e prosseguia
com a imensa sede de domar essa nau
o navio do mundo, proa de pau
e gente, vou desfazendo essa alegoria
da velocidade inconseqüente e valentia
Então sob o olho vermelho pude entender
que no meio do caminho haverá sempre
uma parada. Que para poder se lançar
em uma nova nau ou na mesma estrada
a parada é escada nesse mar inexistente
lar do navio que sente essa imensa sede
E o olho do ciclope ficou verde
por nada se abate no meio do caminho
mas refaço (na mente, ora sozinho)
a alegria de ser bandeirante
dessa estrada normal, fronte e perene,
como se fosse eu navegante
do navio do mundo, esse rente.
Mas antes de cruzar a minha rua
que é porto desse mar inexistente
bem no ápice da glória de ser
homem livre, imortal, transcendente
um gigante me pára e me estanca
com uma carranca de olho-só reluzente
E me olha com o olho bem vermelho
e me diz que o mundo a ser descoberto
é para quem, em si circunspecto,
detém a passividade do que sonha
e não do que se lança ao mar (sob glória)
com velocidade na alma sempre risonha
“Eis que me chamam semáforo ou farol
e eu sou a lembrança sempre presente
de que até mesmo o sol (em seu conseqüente
caminho), ao fim do dia simplesmente
cessa; interrompe-se azul no fim do horizonte
para que se possa dele dizer ‘de si, recomeça’
pare, por isso, e se contenha
espere que o tempo do mundo sobrevenha
e só assim, parado, poderás partir”
Eu, que ao meio do caminho não me abatia
nem por nada parava e prosseguia
com a imensa sede de domar essa nau
o navio do mundo, proa de pau
e gente, vou desfazendo essa alegoria
da velocidade inconseqüente e valentia
Então sob o olho vermelho pude entender
que no meio do caminho haverá sempre
uma parada. Que para poder se lançar
em uma nova nau ou na mesma estrada
a parada é escada nesse mar inexistente
lar do navio que sente essa imensa sede
E o olho do ciclope ficou verde
terça-feira, julho 03, 2007
Quase uma crítica de cinema
Assisti extemporâneo a Baixio das Bestas, movido bem pela curiosidade de ver novamente um filme do Cláudio Assis. O diretor havia repercutido bem no meu imaginário a partir de Amarelo Manga. Logicamente as circunstâncias eram outras, e o texto da obra se perfaz com o contexto do auditório: em Amarelo Manga eu via, pela primeira vez, o Recife real pintado nas telas do cinema. Recife sem concessões à beleza decantada nos inúmeros frevos de bloco. Recife sujo, feio, do ventre inchado, amarelo e roxo como o cadáver Boca-de-Ouro das estórias de Gilberto Freyre.
Aqui e ali, alguns defeitos de narrativa e idéias caricatas, mas nada que prejudicasse o promissor caminho que seria trilhado a partir de então pelo diretor Cláudio Assis.
Justificada, portanto, minha curiosidade acerca do filme Baixio das Bestas.
O filme se desloca do urbano tratado em Amarelo Manga para a Zona da Mata pernambucana, onde se vê um purgatório situado entre o inferno de concreto da urbis recifense e o paraíso selvagem dos sertões pernambucanos. Novamente, como no filme anterior de Assis, não há foco em um personagem específico, mas o desfile de caricaturas que irão tratar, cada um a seu modo, a tese do filme: sexo e violência em uma sociedade decadente de valores. A tese de Amarelo Manga se repete, a diferença está na geografia que, de uma forma ou outra, irá refletir como elemento singularizador do que já antes foi mostrado.
Das críticas que tenho lido, há sempre o entusiasmo pelo Brasil (ou Nordeste) real retratado sem cores artificiais pelo diretor. A crítica do Sudeste não tem economizado nos elogios à lente real da câmera, lente de carne não de vidro, lente de gente não digital. E confessei que esse mesmo elogio à carne foi que me entusiasmou à época de Amarelo Manga. O contexto era outro, e essa carne exposta hoje não traz tanto entusiasmo a mim, que não sou crítico, mas auditório.
Baixio das Bestas tem o seu valor. Fica fácil de perceber sua importância a partir da câmera segura, da fotografia excelente, e dos atores que demonstram desprendimento na entrega à tese defendida no filme.
O grande problema de Baixio, no entanto, reside na percepção de que é muito fácil chocar a crítica do Sudeste a partir da reprodução da violência que já estamos acostumados. E assim o filme se transforma em um simulacro do jornal cotidiano capaz de gerar o mesmo tipo de discussão que se tenciona a partir do filme. As saídas fáceis continuam na forma caricata dos agroboys, tratados a partir da leniência materna que pode ser interpretada como representação fácil do próprio Estado ausente; a metáfora fácil da fossa interminável, a fala fácil do personagem interpretado por Matheus Nachtergaele, que trata a metalinguagem de maneira fácil.
O filme ficou fácil ao tratar de um tema difícil. E só se choca com ele quem não mora na minha rua.
Aqui e ali, alguns defeitos de narrativa e idéias caricatas, mas nada que prejudicasse o promissor caminho que seria trilhado a partir de então pelo diretor Cláudio Assis.
Justificada, portanto, minha curiosidade acerca do filme Baixio das Bestas.
O filme se desloca do urbano tratado em Amarelo Manga para a Zona da Mata pernambucana, onde se vê um purgatório situado entre o inferno de concreto da urbis recifense e o paraíso selvagem dos sertões pernambucanos. Novamente, como no filme anterior de Assis, não há foco em um personagem específico, mas o desfile de caricaturas que irão tratar, cada um a seu modo, a tese do filme: sexo e violência em uma sociedade decadente de valores. A tese de Amarelo Manga se repete, a diferença está na geografia que, de uma forma ou outra, irá refletir como elemento singularizador do que já antes foi mostrado.
Das críticas que tenho lido, há sempre o entusiasmo pelo Brasil (ou Nordeste) real retratado sem cores artificiais pelo diretor. A crítica do Sudeste não tem economizado nos elogios à lente real da câmera, lente de carne não de vidro, lente de gente não digital. E confessei que esse mesmo elogio à carne foi que me entusiasmou à época de Amarelo Manga. O contexto era outro, e essa carne exposta hoje não traz tanto entusiasmo a mim, que não sou crítico, mas auditório.
Baixio das Bestas tem o seu valor. Fica fácil de perceber sua importância a partir da câmera segura, da fotografia excelente, e dos atores que demonstram desprendimento na entrega à tese defendida no filme.
O grande problema de Baixio, no entanto, reside na percepção de que é muito fácil chocar a crítica do Sudeste a partir da reprodução da violência que já estamos acostumados. E assim o filme se transforma em um simulacro do jornal cotidiano capaz de gerar o mesmo tipo de discussão que se tenciona a partir do filme. As saídas fáceis continuam na forma caricata dos agroboys, tratados a partir da leniência materna que pode ser interpretada como representação fácil do próprio Estado ausente; a metáfora fácil da fossa interminável, a fala fácil do personagem interpretado por Matheus Nachtergaele, que trata a metalinguagem de maneira fácil.
O filme ficou fácil ao tratar de um tema difícil. E só se choca com ele quem não mora na minha rua.
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