segunda-feira, julho 23, 2007

Shylock e eu

Compartilho com Shylock essa resignação. Entendemo-nos com os olhos que algo natural mas singelamente revolucionário acomete nós dois. Tal indigesta compreensão se deu na última visita de Shylock à veterinária, quando a sentença foi proferida: “Shylock não é mais um jovem, ele precisa de comida para gatos maduros castrados”. Essa sentença não foi apenas para o meu gato. Foi para mim também. Naquele momento, ao olhar Shylock como um ser vulnerável ao tempo, percebi que estava – do mesmo modo – na metade da vida expectável para uma criatura urbana, que já nasceu, que já cresceu e que não possui novas formas verbais para descrever o percurso da vida até a chegada da indesejada das gentes. Nel mezzo del cammin di nostra vita.
Eu e Shylock somos dois maduros castrados. Shylock é castrado no sexo. Eu sou castrado no transborde da vida. Shylock foi castrado para não destruir a casa em busca de uma fêmea. Eu fui castrado para me tornar exatamente aquilo que a sociedade pede de um macho maduro: provedor, obrigado, circunspeto.
Shylock não consegue mais subir na mesa. Eu ando me esquecendo de compromissos. Shylock não dá três passos sem parar e suspirar. Eu não tomo ações sem pensar nelas cinco a seis vezes (riscos e derivativos). Shylock não tem mais paciência para tomar banho. Eu também não.
Toda vez que sento no sofá, ele se aninha perto de mim, como se dissesse: “E aí, irmão, vamos fazer o quê nesse primeiro dia do resto de nossas vidas?” Eu olho para ele com alguma esperança e digo: “Ora, Shylock, foi justamente nesse momento que Virgílio apareceu para Dante e o levou para conhecer o infinito; foi justamente nesse momento que a máquina do Mundo se abriu para Carlos Drummond de Andrade. Quem sabe não nos aparece algo que o valha?” Ele suspira meio incrédulo e fica aguardando algo que nos contamine de vida.

Enquanto isso, no silêncio além de nós, Maria Eduarda dorme no ventre da mãe.