quinta-feira, dezembro 31, 2009

Tradicional como Roberto Carlos

Quando a noite era prévia ao romper do ano
Sempre escolhia uma roupa nova para a novidade do ano por vir
Para que o passado ficasse alheio a mim, e eu, novo, para o mistério do futuro
Que besteira
Hoje eu visto a mesma roupa do ano passado
A mesma roupa que eu vestirei no ano que vem
Porque eu quero o passado comigo
E os anos que se foram estarão ao meu lado no ano que é novo
Não há novidade maior que estar vivo a cada novo segundo
E em cada segundo do passado eu experimento o ano vindouro



Feliz ano novo aos neus três leitores e à infinidade dos que não me lêem
Sem promessas, mas com esperanças
armadas sempre entre o temor e a maravilha

quinta-feira, dezembro 24, 2009

Feliz Natal







Pela simbologia e tradição



Pela boca dos falsos anjos e profetas



Mas pela verdade das crianças



Que seja essa a nossa oração

Momento Gastronomia - Lisboa


Depois de uns dias pela Península Ibérica, voltei à minha terra e deparei-me com um amontoado de jornais. Todos eles ficaram quietinhos, esperando meu retorno para serem lidos. Dentre tantos assuntos que me apareciam como velhas novidades, supreendeu-me a quantidade de novos restaurantes que surgiram nesses treze dias de minha ausência. Em tão pouco tempo, tantos restaurantes. A maioria deles era objeto de crítica gastronômica que tecia loas (aqui, a crítica gastronômica sempre tece loas) à profusão de "reduções", "espumas" e outras invencionices modernas que se sustentam, na maior parte das vezes, na cozinha espanhola.

Como já deixei bastante claro nesses meus escritos extemporâneos, sou adepto da cozinha verdadeira. Daquela feita com base na tradição. Na cocção lenta dos sulcos orgânicos a ponto de nos refletir no prato feito artesanalmente para nós. Olho com desconfiança, mas não com preconceito, para essa moderna cozinha molecular ou atômica ou coisa que o valha.

Ao refletir sobre o significado da "tradição" fiz um poema, há alguns anos atrás. Dediquei a um restaurante do Recife, o Leite, de matriz portuguesa, que conserva em seu cardápio e em seu ambiente o elogio ao status quo, o que lhe permite, paradoxalmente, ser revolucionário em meio à constante auto-paráfrase do mundo.

Eu havia feito, em uma das versões do poema, uma crítica à contra-tradição, representada, arquetipicamente, pela "desconstrução" gastronômica, moda já citada, de raiz catalã. O trecho do poema foi vetado na versão definitiva do mesmo, mas transcrevo aqui por entender que ele traduz o sentimento que introduz esse meu escrito:


Coisa que sabe à coisa, como eu te desejo !
Carne que tem gosto de carne, vinho que tem gosto de vinho
Mas é apenas artifício isso que vejo

(e o vinho tem gosto de carne e a carne tem gosto de queijo)
Serei eu artifício do meu original? O Mundo se modificou e não sei mais o que me é natural


Introduzo assim meu amor pela comida portuguesa. Pela comida feita com aquilo que se é: alho, azeite, pão. A trama é tecida artesanalmente como se a mesma mão centenária estivesse a guiar os cozinheiros de hoje; e nesse encontro de mãos presentes e pretéritas a tradição se transmuta atemporal e se torna muito mais que a permanência de nós.


Para homenagear a comida portuguesa, apresento "O Pinóquio".


Há treze anos atrás, quando fui a Portugal pela primeira vez, meu pai levou-me ao Pinóquio. Ficou na minha memória o gosto das azeitonas temperadas com alho, o pão de milho com manteiga, as vagens portuguesas refogadas no azeite extra-virgem. Era um mundo novo, mas, de igual modo, familiar, pois ali, no meu prato, estava também a permanência da nossa colonização.

O Pinóquio fica no centro de Lisboa, na Praça dos Restauradores, Baixa. Destaca-se em meio aos prédios históricos pelo seu verde dominante e pelos seus aquários de lagostas, sapateiras e outros frutos do mar, que aguardam o freguês (não consumidor - invenção da modernidade) guloso. Os garçons são verdadeiros malabaristas e contorcionistas, lançando seus corpos nos limites estreitos das mesas, e atendendo com precisão aos reclamos dos gourmets. O preço é acima da média dos restaurantes informais da cidade; mas vale à pena se tua alma não é sovina.

Lá, como sempre o Pica-pau: nacos de filé banhados em azeite e alho, acompanhados de batatas que, ritualisticamente, banhamos nesse bálsamo gordo e benfazejo da tradição portuguesa. Os frutos d´água são igualmente famosos: deixei-os à minha esposa que sonha mais com o mar do que com a terra. Aliás, é nos sonhos que o Pinóquio permanece como memorial da tradição: nessa metade sonhada da gente que não quer mudar.

quarta-feira, dezembro 23, 2009

O nome do texto abaixo é a "Sombra de Príamo". Escrevi pensando no drama pessoal de um homem público, o político Sílvio Costa, que, diante das acusações de improbidade que recaíram sobre seu filho, foi a uma rádio e disparou verborragicamente contra tudo e contra todos, em uma clara atitude antipolítica, mas perfeitamente compreensível sob o signo da paternidade.

O que fará um pai pelo filho? Não pude responder esta questão ao longo de trinta e dois anos da minha vida. Apesar de ter em minha imaginação até então a amplitude do se doar para a descendência, logicamente não sentia na carne a possibilidade da anulação completa em nome de quem mais se ama. A maior prova de amor imposta pela divindade a um homem, nos relatos religiosos da tradição judaico-cristã, foi o sacrifício daquele que procede: o filho. E o mesmo filho seria sacrificado, posteriormente, pela divindade, fechando o ciclo do amor infinito.
Para além da metafísica, só hoje acho que posso compreender o momento mais doloroso da Ilíada, quando Príamo vai a Aquiles reclamar o cadáver de Heitor que dorme insepulto, por capricho do vencedor da batalha. É no momento em que Príamo se ajoelha perante Aquiles, e beija sua mão, que se dá toda a anulação do pai por amor ao filho. No texto traduzido, o canto de Homero ficou assim: “Por teu bom pai de um velho te apiedes/ Mais infeliz do que ele, estou fazendo/ o que nunca mortal fez sobre a terra/Esta mão beijo que matou meus filhos”.
Com um beijo o rei deixa de existir para reclamar não o seu corpo morto, mas o de seu filho, porque ao passar pela morte de sua descendência não existirá coroa ou trono capaz de deixar o rei satisfeito. A Ilíada trata da cólera de Aquiles. Mas é a cólera disfarçada de submissão de Príamo que vence o orgulho do guerreiro. Cólera que o leva, desarmado, a adentrar na tenda do inimigo para mostrar a sua dor. E quem poderia julgar a atitude de Príamo? Quem tem a paternidade no peito sabe da cólera dormente que nos levaria a nossa própria anulação por amor ao nosso filho.
Por ele invadiríamos as rádios, romperíamos alianças, lançaríamos as lanças sobre quem estivesse na frente; beijaríamos a mão do assassino. Faríamos o sacrifício imenso do corpo físico ou do corpo político para resgatar o filho que dorme, justa ou injustamente, insepulto no coração do pai que tudo agüenta, tudo suporta. A despeito de toda política que envolveu a cólera do deputado Sílvio Costa, ao ver seu filho alvo de acusações envolvendo a Secretaria de Turismo do Estado, havia ali, no momento do seu desespero perante a imensa platéia que lhe ouvia, a sombra trágica de Príamo tentando resgatar o corpo filial enterrado por palavras. Só hoje, ao olhar o sono tranqüilo da minha filha, posso entender o beijo resignado do rei Príamo e a cólera paterna do político Sílvio Costa.