O nome do texto abaixo é a "Sombra de Príamo". Escrevi pensando no drama pessoal de um homem público, o político Sílvio Costa, que, diante das acusações de improbidade que recaíram sobre seu filho, foi a uma rádio e disparou verborragicamente contra tudo e contra todos, em uma clara atitude antipolítica, mas perfeitamente compreensível sob o signo da paternidade.
O que fará um pai pelo filho? Não pude responder esta questão ao longo de trinta e dois anos da minha vida. Apesar de ter em minha imaginação até então a amplitude do se doar para a descendência, logicamente não sentia na carne a possibilidade da anulação completa em nome de quem mais se ama. A maior prova de amor imposta pela divindade a um homem, nos relatos religiosos da tradição judaico-cristã, foi o sacrifício daquele que procede: o filho. E o mesmo filho seria sacrificado, posteriormente, pela divindade, fechando o ciclo do amor infinito.
Para além da metafísica, só hoje acho que posso compreender o momento mais doloroso da Ilíada, quando Príamo vai a Aquiles reclamar o cadáver de Heitor que dorme insepulto, por capricho do vencedor da batalha. É no momento em que Príamo se ajoelha perante Aquiles, e beija sua mão, que se dá toda a anulação do pai por amor ao filho. No texto traduzido, o canto de Homero ficou assim: “Por teu bom pai de um velho te apiedes/ Mais infeliz do que ele, estou fazendo/ o que nunca mortal fez sobre a terra/Esta mão beijo que matou meus filhos”.
Com um beijo o rei deixa de existir para reclamar não o seu corpo morto, mas o de seu filho, porque ao passar pela morte de sua descendência não existirá coroa ou trono capaz de deixar o rei satisfeito. A Ilíada trata da cólera de Aquiles. Mas é a cólera disfarçada de submissão de Príamo que vence o orgulho do guerreiro. Cólera que o leva, desarmado, a adentrar na tenda do inimigo para mostrar a sua dor. E quem poderia julgar a atitude de Príamo? Quem tem a paternidade no peito sabe da cólera dormente que nos levaria a nossa própria anulação por amor ao nosso filho.
Por ele invadiríamos as rádios, romperíamos alianças, lançaríamos as lanças sobre quem estivesse na frente; beijaríamos a mão do assassino. Faríamos o sacrifício imenso do corpo físico ou do corpo político para resgatar o filho que dorme, justa ou injustamente, insepulto no coração do pai que tudo agüenta, tudo suporta. A despeito de toda política que envolveu a cólera do deputado Sílvio Costa, ao ver seu filho alvo de acusações envolvendo a Secretaria de Turismo do Estado, havia ali, no momento do seu desespero perante a imensa platéia que lhe ouvia, a sombra trágica de Príamo tentando resgatar o corpo filial enterrado por palavras. Só hoje, ao olhar o sono tranqüilo da minha filha, posso entender o beijo resignado do rei Príamo e a cólera paterna do político Sílvio Costa.