quinta-feira, dezembro 24, 2009

Momento Gastronomia - Lisboa


Depois de uns dias pela Península Ibérica, voltei à minha terra e deparei-me com um amontoado de jornais. Todos eles ficaram quietinhos, esperando meu retorno para serem lidos. Dentre tantos assuntos que me apareciam como velhas novidades, supreendeu-me a quantidade de novos restaurantes que surgiram nesses treze dias de minha ausência. Em tão pouco tempo, tantos restaurantes. A maioria deles era objeto de crítica gastronômica que tecia loas (aqui, a crítica gastronômica sempre tece loas) à profusão de "reduções", "espumas" e outras invencionices modernas que se sustentam, na maior parte das vezes, na cozinha espanhola.

Como já deixei bastante claro nesses meus escritos extemporâneos, sou adepto da cozinha verdadeira. Daquela feita com base na tradição. Na cocção lenta dos sulcos orgânicos a ponto de nos refletir no prato feito artesanalmente para nós. Olho com desconfiança, mas não com preconceito, para essa moderna cozinha molecular ou atômica ou coisa que o valha.

Ao refletir sobre o significado da "tradição" fiz um poema, há alguns anos atrás. Dediquei a um restaurante do Recife, o Leite, de matriz portuguesa, que conserva em seu cardápio e em seu ambiente o elogio ao status quo, o que lhe permite, paradoxalmente, ser revolucionário em meio à constante auto-paráfrase do mundo.

Eu havia feito, em uma das versões do poema, uma crítica à contra-tradição, representada, arquetipicamente, pela "desconstrução" gastronômica, moda já citada, de raiz catalã. O trecho do poema foi vetado na versão definitiva do mesmo, mas transcrevo aqui por entender que ele traduz o sentimento que introduz esse meu escrito:


Coisa que sabe à coisa, como eu te desejo !
Carne que tem gosto de carne, vinho que tem gosto de vinho
Mas é apenas artifício isso que vejo

(e o vinho tem gosto de carne e a carne tem gosto de queijo)
Serei eu artifício do meu original? O Mundo se modificou e não sei mais o que me é natural


Introduzo assim meu amor pela comida portuguesa. Pela comida feita com aquilo que se é: alho, azeite, pão. A trama é tecida artesanalmente como se a mesma mão centenária estivesse a guiar os cozinheiros de hoje; e nesse encontro de mãos presentes e pretéritas a tradição se transmuta atemporal e se torna muito mais que a permanência de nós.


Para homenagear a comida portuguesa, apresento "O Pinóquio".


Há treze anos atrás, quando fui a Portugal pela primeira vez, meu pai levou-me ao Pinóquio. Ficou na minha memória o gosto das azeitonas temperadas com alho, o pão de milho com manteiga, as vagens portuguesas refogadas no azeite extra-virgem. Era um mundo novo, mas, de igual modo, familiar, pois ali, no meu prato, estava também a permanência da nossa colonização.

O Pinóquio fica no centro de Lisboa, na Praça dos Restauradores, Baixa. Destaca-se em meio aos prédios históricos pelo seu verde dominante e pelos seus aquários de lagostas, sapateiras e outros frutos do mar, que aguardam o freguês (não consumidor - invenção da modernidade) guloso. Os garçons são verdadeiros malabaristas e contorcionistas, lançando seus corpos nos limites estreitos das mesas, e atendendo com precisão aos reclamos dos gourmets. O preço é acima da média dos restaurantes informais da cidade; mas vale à pena se tua alma não é sovina.

Lá, como sempre o Pica-pau: nacos de filé banhados em azeite e alho, acompanhados de batatas que, ritualisticamente, banhamos nesse bálsamo gordo e benfazejo da tradição portuguesa. Os frutos d´água são igualmente famosos: deixei-os à minha esposa que sonha mais com o mar do que com a terra. Aliás, é nos sonhos que o Pinóquio permanece como memorial da tradição: nessa metade sonhada da gente que não quer mudar.