quinta-feira, dezembro 22, 2011

Tombamento e Permanência




Se a mim fosse dado escolher um poder, dentre os poucos possíveis aos homens, escolheria o poder de tombar. Sem processo administrativo, sem as burocracias das adequações históricas, eu salvaria da finitude do tempo aquilo que eu penso amar. Tombaria as árvores imensas do quintal da minha avó, tombaria os nomes de rua, do Recife que quase virou pó. Não o Recife das grandes revoluções, das Igrejas seculares, dos casarões sem fim. Estes já são tombados, já foram, pelo Governador, resguardados; e, de certo modo, eu os conservo em mim. Eu tombaria o Recife das pequenas revoluções: uma mercearia antiga, a padaria da esquina, o vendedor de doces desfilando seus bordões. A Brasília azul do meu pai jamais seria vendida, eu desfilaria com ela aos domingos desafiando com sorrisos o tempo das coisas idas.


Eu tombaria o muro de uma casa, onde se deu um primeiro amor. Os anos em que o Sport, sem muitas dificuldades, consagrou-se vencedor. Não haveria necessidade de decreto, de publicação no diário oficial. De parecer dos arquitetos, dos historiadores, de adequação ao fato social. Bastava ser agradável aos sentidos e eu assinaria o ato. Imunizaria a memória da cegueira branca dos homens e o capitalismo que pagasse o pato.


Ninguém construiria arranha-céu onde sorriu o meu avô, na frente do Edifício Caiçara, que por força das retinas e das vontades pequeninas, da força demolidora dos homens se salvou. E defronte ao mar infinito, no lugar em que o tempo é mais bonito, o Edifício Caiçara vai ficando. Graças a união das saudades partidas, um castelo foi salvo, ladeado por outras coisas que, pela cegueira dos homens, vão se perdendo. Quisera eu ter o poder de tombar o mundo e dissipar essa ausência que, lentamente, vai me doendo.


Eu proibiria, sem decretos, tudo que amamos fenecer: pois se é do sonho dos homens que uma cidade se inventa, é pela memória do povo e pela saudade que aumenta que ela vai permanecer.