quarta-feira, dezembro 21, 2011

Relicário





A família Aires de Souza possuía por tradição imemorial – segundo contavam as crônicas genealógicas das famílias do século XIX, hoje arregimentadas no arquivo público – a retirada proposital de uma víscera do corpo para escondê-la encaixotada e além da própria morte ou vida. Esse estranho hábito ensinado por um pai negro, quando a família ainda residia em Lisboa, de acordo com fontes infidedignas, estava ligado à ascendência judia dos Aires de Souza; a um desejo inafastável de guardar o que lhe era mais precioso.

O avô de Gertrudes possuía em uma caixa de madeira, seu estômago. E isso lhe permitia os ganhos com os negócios de açúcar, bem como a falta de qualquer pudor ao chicotear um negro que não se submetesse ao capital branco e doce do Sinhô. Era no estômago que dormia a piedade.

Gertrudes ouvia essas estórias quando pequena. Aos poucos as estórias foram silenciando. O marido foi silenciando. Os filhos foram silenciando. Os netos foram silenciando. E todas as vozes que ouvia em casa eram dirigidas para algo além, nunca para Gerturdes.


Justamente pelo monopólio do silêncio, era tão fácil entrar no quarto desapercebida. Não havia perguntas inconvenientes, nem curiosidades a serem satisfeitas a partir de estórias do passado. Essa solidão resignada era a chave do seu tesouro, que estava escondida atrás do quadro do seu avô. A ansiedade que sentia era um medo do mundo. De que o mundo, de repente, invadisse o seu quarto, com todas aquelas medicinas, bancários, previdências e assaltasse o seu santuário, com mãos multiplicadas a contaminar a fragilidade do que lhe era mais caro nessa vida.


Por isso o exercício eterno de sentinela a checar o cofre atrás do quadro. E dentro do cofre, o conteúdo de sua vida: caixinha adornada a homenagear a riqueza do que estava depositado. Um relicário, igual aos que estão depositados nas paredes de uma das salas da Catedral de Nossa Senhora com os Pés na Lua, em Madrid.

Seu, tão seu. Porque dentro do relicário estava silencioso, pétreo e murcho o seu coração. Retirado conforme as receitas ancestrais do pai negro, em Lisboa.

Placa de prata com nome gravado: Gertrudes; às vezes, o coração parecia chamar querendo o consolo do peito vazio. Mas o coração permaneceria na caixa até o fim dos dias de Gertrudes e talvez até os dias posteriores. Conservado não por formol, ou química semelhante, mas pela ausência do silêncio, das medicinas, dos bancários e das previdências; conservado para se ver livre das maldades e tentações desse mundo, como um corpo incorrupto de um santo que permanece para além dos vermes.