Lendo um texto em um jornal amarelado pelo tempo, o tempo me pergunta: de que tens saudade (que o tempo usa o tempo verbal tu, como toda instituição eterna).
Entre viagens para lugares inimagináveis, amores passados a limpo, entre bebedeiras intermináveis, e glórias pequenas (como a de estar vivo), tive saudade de um ponto obscuro da minha vida. E não sei bem porque entre tantas damas cheias de ouro e jade peguei na mão de uma serva, e findei por escolher um momento sem grandes significações dentro de uma biografia quiçá um dia existente.
Saudade, tempo, sinto daquele dia em que nos enfurnamos no carro de Mário e fomos para Enseada dos Golfinhos, e eu já não era um menino, mas também não era o homem que hoje sou. Enseada dos Golfinhos é uma praia perto de Itamaracá sem maiores atrativos turísticos, fora da circunscrição de festas que assola as praias do litoral sul do meu Estado. É uma prainha de nada, depois de um caminho margeado pela mata fechada (pelo menos assim me lembro da praia, talvez seja apenas uma construção da lembrança, como, de resto, é o mundo inteiro).
Fomos eu, o Gordo (todo mundo tem um amigo Gordo), Gabriel e Mário. Não havia qualquer desejo de estripulias sem responsabilidades, ou de experiências sensorias individualistas ou em grupo (como rituais primitivos...bom, vocês entenderam). Estávamos querendo sair um pouco da rotina, na inocência de alguém que só deseja a praia longe ao reverso do concreto perto.
Saudade tenho da gastronomia, a despeito do frango assado comprado na padaria, na beira do caminho, e da farofa industrializada requentada no fogão meia boca (que deu uma nova definição a minha esofagite). Passamos muito bem; talvez porque naquela época nossa língua era menos áspera e qualquer coisa com bastante sal fosse uma festa para o nosso paladar.
Saudade tenho do banho de mar que tomávamos no fim de tarde, olhando as meninas passando, com a única obrigação de não pensar em nada, nem nas meninas. Da areia batendo nas costas sopradas pelo terral.
Saudade tenho da maconha degustada vagarosamente na rede, enquanto o solo de bateria na música de Jorge Ben ia ficando cada vez maior, até tomar conta do nosso sono.
Saudade tenho do futuro incerto que ditava a moda naquela época, e eu só queria morrer muito cedo depois de ter gravado um disco conceitual e ter publicado meu livro de poemas. Éramos todos efànt terribles sem nos darmos contas que acharíamos belos os poemas de Verlaine, embora não tivessemos a maturidade de assumirmos que gostaríamos de lê-los.
Saudade tenho da dor da volta, da poeira levantada pelo carro e nossos rostos pigando de suor enquanto encostávamos nos colchões que havíamos levado para amortecer nossas almas.
Saudade eu tenho desse tempo em que eu não tinha saudade de nada.