quinta-feira, janeiro 11, 2007

Canção do Exílio, 07-08-1969


Se teus olhos estivessem aqui, Maria, veriam que minhas mãos enfim. Despertaram-se das algemas, e hoje sorriem para mim. Mas eu não rio para ninguém, Maria. Decerto por causa do frio.

Um frio que dá aqui dentro, nas cordilheiras dos meus rins. Que começa cá no Chile e sobe para o vidro dos olhos. Procura, procura e nada. Nem Maria, nem consolo, nem diabos, nem querubins. Maria, se você pudesse, ver as minhas mãos libertas, e deixa-las presas em Maria, lágrimas não haveria, nem nos meus olhos nem nos de ninguém. E as flores não morreriam, Maria, e o inverno não mataria, Maria, quem a gente quer bem. Meu passaporte seria a tua palavra. Dirias o que sabes de mim. E falarias de Maria, dos meus pecados, dos meus querubins. E isso me bastaria, não precisava de mãos libertas que hoje despertam enfim.

Maria, se você pudesse ver Santiago do Chile. Teus olhos procurariam os porquês do sabiá. Que não há garrafada de feira nem roda de se cantar. Segurarias meus dedos, com medo de avançar, dentro dessa língua-palato, Maria, e eu iria te acalmar. Contava estórias de sangue, de um tempo que o mar levou. Em que eu vencia bicho grande, Maria, e liberdade ao vencedor. Depois te ensinava a dar cada passo nesta terra estrangeira, pra gente se perder na gente, mas mantendo a alma brasileira. Faríamos feijoada quando chovesse, Maria, e chamaríamos os nossos pares, esvaziaríamos as revoluções, os quintais dos nossos lares, para relembrar que Chico, Maria, lançou um novo LP. Que em Dezembro chega de contrabando e a gente tentando conter, o deslumbramento perante a palavra, Maria, o choro equivocado, Maria, a dor atravessada, Maria, tudo que eu sinto hoje, Maria, e hoje não há você.

Se teus olhos estivessem aqui, Maria, veriam que minhas mãos enfim. Despertaram das algemas. E hoje sorriem para mim. Mas para quê mãos libertas, Maria, se tu não estás aqui? De que me vale um país livre, sem tua boca para me trancar? Meus olhos já se esqueceram dos porquês do sabiá.


A carta de Augusto Carneiro nunca foi enviada à Maria, sua noiva que ficou em Recife, no ano de 1969. Augusto morreu de câncer no Chile em Outubro de 1972. Maria se casou com Hermano Souza Santos, hoje captador de recursos na Fundação de Cultura da Prefeitura da Cidade do Recife. O amigo chileno de Augusto Carneiro, Juan Remoz, herdou seus pertences pessoais e seu livro nunca terminado, e publicou a carta transcrita acima no “Diario de la Nación” em 08/07/1982. Os leitores reclamaram que não houve tradução para o espanhol.