sexta-feira, janeiro 28, 2011

O Movimento dos Barcos









(Jards Macalé e Capinan)

Estou cansado e você também
Vou sair sem abrir a porta
E não voltar nunca mais
Desculpe a paz que eu lhe roubei
E o futuro esperado que eu não dei
É impossível levar um barco sem temporais
E suportar a vida como um momento além do cais
Que passa ao largo do nosso corpo

Não quero ficar dando adeus
As coisas passando, eu quero
É passar com elas, eu quero
E não deixar nada mais
Do que as cinzas de um cigarro
E a marca de um abraço no seu corpo

Não, não sou eu quem vai ficar no porto
Chorando, não
Lamentando o eterno movimento
Movimento dos barcos, movimento

quinta-feira, janeiro 20, 2011

Amar




(Carlos Drummond de Andrade )



Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia, o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave
de rapina.Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

segunda-feira, janeiro 17, 2011

O anti-britânico

Eu freqüentemente me atraso para a flor que a vida me ofertará
Como um vício não tão raro, que se cultiva dentro de mim
Por outra mão que não a minha, hei freqüentemente de me atrasar
E sequer hei de chegar ao dia em que se anunciará meu fim

Porque o tempo não negocia comigo,
taciturno como meu pai, não me lança um olhar
E a aurora das coisas, como fruto inalcançável – mas de beleza táctil
irmana-se fácil com o tempo presente
E minha pele ressente saber e não estar lá

Enquanto o mundo faz e se refaz dentro de um avião
Minha preocupação é correr e pegar o bonde
Que por um infortúnio do meu vício, gritou meu nome e já passou
Eu sigo atrasado sei lá, não sei, para onde
Pois o meu século vinte no meu século dezenove caiu e ficou

E assim eu durmo sem ouvir o relógio que deveria me acordar
As catedrais e as cidades vão se construindo para além de mim
Por outra mão que não a minha, hei freqüentemente de me atrasar
E sequer hei de chegar ao dia em que se anunciará meu fim

quinta-feira, janeiro 13, 2011

Muitos amigos bons



Alguns amigos bons

And you can tell everybody this is your song


PS - É a cara da mãe, mas o espírito...é todinho do papai

terça-feira, janeiro 11, 2011

A valsa da princesa

A princesa que já não dormia,
por, quem sabe, esperar o fim do século
aguardava o homem Ulisses que lhe havia,
prometido ser-lhe contraparte do espéculo


A princesa enquanto paciente aguardava
bordou um imenso tapete de tramas
onde o Mundo era outro e estava
imune a tristezas, feridas e chamas


Bordada em cores, estampava a alegoria
da eterna felicidade da princesa
que perdida entre unicórnio, leão e utopia
mantinha a alegria da esperança acesa


E no tapete só reinava a princesa
que escoltada em ouro pelas suas damas
dançava eterna e infinita com alma tesa
bordada por si mesma nas entrelinhas das tramas


A princesa de fora admirava a princesa de dentro
por reconhecer que do tapete para si, duas havia
uma, bordada por Deus, era carne, dor e vento
a outra, fruto de si, era somente alegria


E eis que, absorvida na sua imagem bordada
surpreendeu-se a princesa com um chamado distante
Ulisses, o homem-deus que ela tanto esperava
apareceu perante seus olhos, em um rompante


E lhe arrebatou e lhe levou para casa
deu-lhe jóias, máquinas e cotidiano
cristais de murano, bichos fantásticos, carros com asas
deu-lhe todos os seus dias do ano


E em uma noite de núpcias e de paz
no instante em que Ulisses dormia
a princesa sorrateiramente por trás
estripou o dormente enquanto sorria


Encarcerada a princesa, questionaram-lhe o ato
“porque, de maneira tão horrenda, rasgaste a lei?”
e ela respondeu tranqüila sobre o ocorrido fato
“porque eu nunca fui feliz como no tapete que bordei”

segunda-feira, janeiro 10, 2011

A Função Social do Amigo Gordo




Ao Gordo (sempre Gordo)
A Filipe (a partir de amanhã, ex gordo)



Todo grupo social que se preze tem um amigo gordo. Ele é a liga que une os demais membros da confraria. Ele é o bonachão, por vezes, é o mal-humorado em outras tantas, é o cara que aceita a berlinda porque sabe que nenhuma reunião regada a cerveja funciona sem uma berlinda. O amigo gordo se sacrifica pelos demais, na sua imensa sabedoria, no santo ofício de beber até a última gota de cerveja, ou de comer o acepipe restante do prato. Morrerá um tanto mais cedo, com as veias entupidas, mas cumprirá, até o final, a sua missão de ligar nas noites de segunda-feira para exigir a presença daquele pai de família na mesa de ferro enferrujada que descansa tantos copos do líquido sagrado translúcido e que será o motor de mais uma discussão conjugal.
O amigo gordo tem uma pança farta, mas possui orelhas imensas. A ele nós confessamos os segredos mais remotos, as transgressões cotidianas, a tristeza de um projeto malfadado. O amigo gordo, por ser quase infinito, é um divã enorme que se oferece à análise do sagrado e do profano.
O amigo gordo sempre aceita um convite para almoçar no sábado. Está sempre disposto a alegrar a tarde de um fim de semana após uma sexta sombria. Ele tem o dom de absorver, em suas camadas adiposas, a tristeza e devolver a alegria que só existe no colesterol. Ele é a vaca mais preciosa do rebanho, o elogio à camaradagem, a irmandade do mundo inteiro personificada em um sujeito.
O amigo gordo nos faz sentir mais leves.

domingo, janeiro 09, 2011

Sobre o brega e outros bichos

Dentro do contexto social denominado “mundo cultural” ou coisa que o valha há uma supervalorização da música extremamente popular que se convencionou a chamar de “brega”. Basta uma pesquisa rápida sobre novas bandas do mercado musical independente para que se comprove a existência de um viés seguido por novatos e que está sustentado na música feita na periferia das grandes cidades do Norte e do Nordeste.

O grupo social que gosta de se afirmar na contramão da cultura de massa, e por tais razões mais culta que as demais, vem ostentando sua presença em festas realizadas fora das circunscrições geográficas da classe média de uma maneira ideologizada, utilizando não apenas como diversão, mas como provocação.

O questionamento da dicotomia entre a música brega e a chamada MPB já havia sido colocada em xeque desde a década de 70 com Caetano Veloso gravando (e cantando ao vivo no Phono 78) “Eu vou tirar você desse lugar” do Odair José. Posteriormente, Caetando gravou outros cantores tachados de “cafonas”, o adjetivo antecessor do “brega”. Algumas dessas gravações são memoráveis.

Particularmente eu já apresentei minha opinião quando tive a oportunidade de escrever sobre o fenômeno João do Morro (quem tiver curiosidade, ver os comentários http://acertodecontas.blog.br/atualidades/joao-do-morro-um-sambista-de-verdade/).

Gosto bastante de algumas músicas do grupo Calypso e acho “A Vida é Assim” uma música muito bem estruturada, apesar da letra simples e sem pretensão. Qualquer segregação apriorística do que é ou não é arte será sempre o mesmo preconceito que, no início do século XX, recaiu sobre o samba.

O que eu não concordo é o tratamento ideologizado do “brega” e a tentativa de impor qualquer música feita na periferia (geográfica ou cultural) como ponto de resistência à massificação midiática. Para mim, tal atitude esvazia o conteúdo crítico, empobrece o reconhecimento do que é arte popular e desvaloriza a espontaneidade da música que paradoxalmente (e momentaneamente) é louvada.

A boa música se releva por si, independente de posturas guerrilheiras da pseudo-intelectualidade que faz da falta de recursos uma bandeira que se perpetua para legitimar a divisão cultural.

PS – Para fins de fomentar a discussão eu coloco uma versão feita para o novo fenômeno popular “Vou não, posso não”, onde um arranjador preencheu a música com acordes dissonantes não existentes originalmente na música e deu um andamento de bossa nova.
http://www.youtube.com/watch?v=YiPMK6e6bT0&feature=player_embedded

Evidentemente trata-se, aqui, de uma tentativa de demonstrar que qualquer música bem arranjada é boa. O argumento é falacioso por dois motivos: 1) A música tocada é instrumental. A letra é suprimida. 2) A estrutura da música ocidental, desde a Idade Média, segue um padrão de escalas tonais que soa agradavelmente aos ouvidos. De Tom Jobim a DJ Sandro esse padrão é minimamente repetido (não vão sair por aí dizendo que estou a comparar um com o outro). Um arranjo bem feito em cima de acordes seqüenciais sempre vai soar agradavelmente aos ouvidos do auditório. Isso não quer dizer que a música é boa, nem que isso é arte.

Para ver as meninas



(Paulinho da Viola)

Silêncio por favor

Enquanto esqueço um pouco

a dor no peito

Não diga nada

sobre meus defeitos

Eu não me lembro mais

quem me deixou assim

Hoje eu quero apenas

Uma pausa de mil compassos

Para ver as meninas

E nada mais nos braços

Só este amor

assim descontraído

Quem sabe de tudo não fale

Quem não sabe nada se cale

Se for preciso eu repito

Porque hoje eu vou fazer

Ao meu jeito eu vou fazer

Um samba sobre o infinito

Pele Negra


Durante alguns anos, nesse blog, eu expus minha vontade de gravar um disco definitivo que assumiu diversas feições ao longo do tempo. O último disco foi gravado em 2003, há mais de sete anos atrás. Nesse hiato imenso eu compus novas melodias, escrevi novas letras, pensei em discos perfeitos. Mas minha vida não ficou estática e eu assumi muitos compromissos em cada meandro que compõe esse hiato. No ano passado, eu e Rodrigo fomos atrás de um produtor musical que pudesse nos orientar na direção certa, já que ambos guardávamos (e ainda guardamos) tantos projetos possíveis, sem qualquer pretensão mais adolescente de ser um rock (ou samba) star. E descobrimos que o mundo profissional da música não guarda qualquer relação com o universo imaginário da arte do compositor. São coisas completamente diferentes. A dificuldade de se concretizar um projeto findou por lançar ao mar profundo nossos projetos. Mas eis que ainda no mesmo ano de 2010, Chris Nolasco aparece na minha casa dizendo que havia aprovado um projeto no FUNCULTURA e que queria contar com quatro músicas minhas. Qual não foi minha felicidade. Maior felicidade foi acompanhar a feitura do disco, entender cada detalhe de uma gravação, da feitura do projeto, das condições profissionais dos músicos. Sinto que esse hiato valeu a pena. Que eu não estou parado. Que algo de bom me espera nesse ano de 2011. E eu queria dividir isso com vocês. Logo, logo o CD “Pele Negra” estará finalizado e eu poderei postar as minhas músicas gravadas por Chris, e compartilhar um pouco dessa minha arte mexida e remexida pela profissão de fé.

sábado, janeiro 08, 2011

A Corrupção do Mundo

Um rato debaixo da cama é um rato, é um rato, é um rato

é um rato, é um rato, é um rato, é um rato, é um rato,

é um rato

debaixo da cama

sexta-feira, janeiro 07, 2011

O Medo

(Alceu Valença)



Mas eu não quero viver cruzando os braços
Nem ser cristo na tela de um cinema
Nem ser pasto de feras numa arena
Nesse circo eu prefiro ser palhaço
Eu só quero uma cama pro cansaço
Não me causa temor o pesadelo
Tenho mapas e rotas e novelos
Para sair de profundos labirintos
Sou de ferro, de aço de granito
Grito aflito na rua do sossego

Mas na verdade é mentira
Eu sou o resto
Sou a sobra num copo, Sou sobejo
Sou migalhas na mesa
Sou desprezo
Eu não quero estar longe
Nem estou perto
Eu só quero dormir de olho aberto
Minha casa é um cofre sem segredo
O meu quarto é sem portas, tenho medo
Quando falo desdigo, calo e minto

Sou de ferro, aço e de granito
Grito aflito na rua do sossego