sexta-feira, dezembro 31, 2010

A última crônica do ano

O ano de 2001 foi um ano especialmente bom para a uva Cabernet plantada no Chile. As condições climáticas, aliadas à inserção de novas técnicas introduzidas por experts europeus recém empregados em vinícolas chilenas, produziram uvas que atingiram seu grau ótimo para a produção de vinho, resultando em um congraçamento entre enófilos apreciadores da espécie Cabernet, ao redor de todo o mundo.

Nós não somos uvas. Não seremos colhidos. É certo que nos transformaremos em algo, adiante, mas esse algo permanece como coisa impronunciável encoberto pelas limitações da física, da fé e do homem. Por isso, eu não acredito em um ano bom. Eu acredito na sucessão de eventos previsíveis e imprevisíveis que está pautada de maneira fictícia por uma divisão estabelecida pelo homem que se baseou no seu conhecimento imperfeito acerca do movimento da Terra. O ano, do seu começo ao fim, é uma simples e imperfeita ficção.

A cada espaço de tempo pré-determinado nesses doze meses nós choramos, sorrimos, temos explosões de felicidade, sentimentos de solidão infinita, melancolias, achamentos e despedidas. Todo ano é e será assim.

No fundo, para nós, o ano de 2001 não foi muito diferente do ano de 2011. Os marcos mudaram decerto, mas a percepção subjetiva do mundo segue sob a pauta das mesmas emoções que serão renovadas em outros eventos. Em 2011 e me despedirei, eu acharei, sorrirei em explosões de felicidade e me sentirei impotente perante a solidão avassaladora do ser, tal como vem ocorrendo desde o primeiro ano em que me apartei do universo para ser um sujeito único e caminhante sobre a superfície do perceptível.

O engraçado e contraditório disso tudo é que, a despeito dessa racionalidade que antecede o brinde do vindouro, no momento do verso contrário da Tabacaria, vem sempre em mim a esperança da uva: de que o próximo ano seja um bom ano como o de 2001 foi para a uva Cabernet plantada no solo fértil do Chile.

A esperança é sempre maior do que aquilo que eu penso acreditar. E de uma maneira sub-reptícia, a ficção do tempo, criada de modo imperfeito pelo homem, subjuga a realidade corpórea e sem graça da vida desencantada, ao som dos fogos infinitos da fé e ao sabor de um vinho degustado no entreato de uma década que se foi.



ps: Um bom ano aos que desejam o melhor possível de dentro de uma taça ou de uma casca de noz

domingo, dezembro 26, 2010

Feliz Pós-Natal

O natal saiu pela porta e eu fui com ele,
Rodar pelas ruas antigas da cidade
Em tudo havia uma paz extremamente subjetiva
Que só o comércio adormecido pode ofertar
Uma mulher louca falava consigo
A sombra de alguém cambaleava embriagada rumo a nada
Dois policiais faziam uma velha cuspir pedras de crack, na ponte

Não havia anjos, não havia reis
Nenhuma glória a distinguir a pobreza sagrada da profana
A cidade era uma grande manjedoura vazia, sem pastores e vacas
E não havia homem ou deus que desejasse romper um ventre,
E embalar seu sono naquela pouca, magra e recifense paz.

domingo, novembro 07, 2010

Lullaby

Ao Mafuá do Malungo




Nessa rua, nessa rua tinha um bosque,
e tinha um portão de ferro para o passado não sair
tinha a marca dos meus dedos em uma casa
e um bonde imaginário sempre por vir

Dentro do bosque (dentro dele) morou um anjo
Cujas asas a poesia arrancou
Tinha uma dentadura engraçada e proeminente
e não sabia – pobre anjo - falar de amor

(Bosque, rua, anjo e tempo não resistem
Às intempéries que constroem as discussões
são de vento ou de sonho, e não se firmam
duram só o momento das ilusões)

Se essa rua, se essa rua fosse minha,
Eu mandava, eu mandava ladrilhar
Com a pedra que constrói a eternidade
Para o que eu fui nunca mais se acabar

terça-feira, novembro 02, 2010

Notinha Social 02/11

Um vendedor de caranguejos passou em frente à minha casa; bastou isso para aquela melancolia saudosista de Manuel Bandeira tomar conta de mim. Tentei em vão livrar-me do lirismo, da visão idílica de um Recife que já se foi. Qual quê. Prega na gente que nem o piche que não existe mais. Não existe remédio para isso. Pode se empanturrar de água rebelo, elixir paregórico, enfiar aspirina goela abaixo: o saudosismo recifense é um verme que se instala no coração.

quinta-feira, outubro 28, 2010


Uma menina feliz faz cá dentro a felicidade imensa
Flagrada distraída no passado - presente
foram meus olhos que fotografaram, longe, mas perto também
E seis anos jamais se passaram, estão aqui

segunda-feira, outubro 25, 2010

VIRGINDADE





Por que chegaste agora, unicórnio, quando minha mão apedrejou o mundo?
Agora que os meus nós seguraram os barcos, e a vazão do mar não passa minha sala
Por que chegaste agora que meu peito inflamado ora se cala,
e quando meu peito calado é, morto, um mar sem fundo?

Por que chegaste agora, unicórnio, se agora eu uso gravata?
E tudo que há ao redor de mim tem carimbo, duplicata e segunda via
Por que apareces a mim quando tenho sono no final do dia
E o coração rebelde morreu confinado em embalagem de lata?

Por que chegaste agora, unicórnio, quando meus cabelos são mais brancos?
E toda palavra que sai da minha boca tem que ser pensada
Tu chegaste quando o exército do mundo derrubou minha armada
E a areia do moto-contínuo fez brotar todos os meus cancros

Por que chegaste agora, unicórnio, quando meus modos são de fino trato?
E as revoluções da noite não resistem mais ao raiar do dia
Por que olhaste para mim quando em mim plantei essas flores de ironia?
E te sufoquei lentamente até de unicórnio verteres em rato

domingo, outubro 17, 2010

Bastardo

Se eu não escrever hoje esse poema, alguém o escreverá por mim
Na tradição do haiku japonês ou nos longos descritivos latino-americanos
Ou em São Paulo, um poema rápido, certeiro, como a cidade que já se foi

O poema não se atém a mim
Não se dobra
Não se cala
Não diferencia o caráter de quem o empunhará

Talvez o filho de um poeta morra hoje (e a solidão avassaladora do ser
Lance uma rede para o infinito
E roube de mim esse poema, que tanto custa a nascer)

domingo, outubro 10, 2010

Maria Eduarda, meu tempo

O paradigma do meu tempo estava nos fios brancos da minha cabeça, no meu corpo que não corresponde mais às expectativas da plenitude humana. Agora, eu vejo o tempo agir no sorriso de Maria Eduarda. Nas perguntas que ela me faz. O tempo desce nos cachos de saem da cabeça de Maria Eduarda e não se deixa domar apesar dos meus clamores para que ela caiba de maneira perpétua em meus braços. Maria não se importa com a passagem das horas, ela é imune às digitais que o velho imprime dentro da nossa cabeça. Mas eu sou atingido toda vez que uma vela a mais compõe sua idade sobre o bolo de aniversário. Já não preciso me olhar no espelho, contar os dias, dispor dos segundos restantes. Minha medida de tempo está em Maria; é nela que eu envelheço, é por ela que fico cada dia mais novo, renascendo frente ao tempo que, tão perfeitamente, sorri para mim.

terça-feira, setembro 21, 2010

VESTIR O MORTO

Vestir o morto
Cobrir com cotidiano o corpo lasso do morto
Conceder-lhe dignidade com o terno
Humanidade com a gravata
Adoçá-lo com os sapatos caros de pelica

Vestir o morto
Atualizar o tempo ido do morto
Dar razões às lágrimas ao se domar a morte
Com a roupa mais clara que possuía o morto
Conter a decomposição mundana do corpo

Vestir o morto
Emprestar um último suspiro ao morto
Recobrir a pele fina com outra pele mais bela
Congelar a vida extinta enquanto a terra espera
Para despir com morte a vida fictícia, inventada e terna

quinta-feira, agosto 19, 2010

No Zé Corninho

Amanhã eu não irei ao Zé Corninho.

Triste do homem que, às sextas-feiras, não possui um lugar sagrado para preparar sua ressurreição. Nós morremos um pouco da segunda até as onze horas da sexta. Um pouco por vez. Desfazemo-nos, cotidianamente, nas obrigações irremediáveis, na busca pelo conforto, na imagem calculada de homem bom. Isso é a nossa morte, ou a antecipação do sono definitivo. Mas às sextas-feiras, somos chamados a recuperar a nossa vida, nossa matéria perdida no mundo, e nos possibilitam o livramento das gravatas, dos prazos, do homem bom.
Meu marco de ressurreição das sextas-feiras tem sido o Zé Corninho. Esse recinto familiar que não possui placa, propaganda ou reclame na televisão. Um dos muitos meandros da capital que faz a sua fama sob o fogo das panelas quentes de dobradinha e de um bom bacalhau.
O nome do local é “Recanto dos Amigos”. A lenda de um patriarca já ido proveu com a alcunha de “Zé Corninho”. Eu me sinto mais à vontade o nomeando assim. Mas tão folclórico quanto a alcunha do lugar é a cara amarrada do filho Gustavo, a beleza da filha Carol, o gosto inesquecível que vem de uma cozinha pilotada pelo amor familiar, Deus nos permita a pieguice.
Não gosta de dobradinha, nem de bacalhau? Encomende o pernil de carneiro recheado. Também não gosta? Vá prá puta que pariu lá pelos lados do Tacaruna. Acho que seria isso, mais ou menos, o que Gustavo diria a você.
É comida de panela, de gente, de sexta. E após a primeira cerveja, você talvez ouça a voz dos anjos conclamando à ressurreição da carne, dos miúdos, da farinha e da pimenta. Bendito seja o homem que não tem medo de renascer.

...

Amanhã eu não irei ao Zé Corninho.

Da Avenida Agamenon Magalhães, entre na Rua Odorico Mendes (a do Clube das Pás). Depois de cruzar a Estrada de Belém, dobre na segunda rua à direita. Fica no fim da rua, do lado esquerdo.

domingo, agosto 15, 2010

Auto-retrato

André Souto Maior Mussalem, aos trinta e cinco anos de idade

É eficiente bancário de um banco privado onde as moedas são desnecessárias
Foi nomeado servidor público quando o mundo se acabou, e não havia quem requisitasse uma necessidade qualquer
Possui mãos grandes que colocou a serviço do rei da Inglaterra, recentemente decapitado por nunca ter sido um homem fiel

Escritor de célebres romances, foi tomado de um sentimentalismo inexplicado no século XIX,
ficando cego no século XX, quando a primeira bomba estourou
cresceu-lhe um tumor na alma que redundou em seu primeiro casamento
mas dá-se muito bem com as chagas que lhe mandou o Nosso Senhor

Dele diz-se invisível ao meio-dia quando o sol é mais claro
Dorme tranqüilo, às nove, no leito de um grande amor

sábado, agosto 07, 2010


O Homem Velho
(Caetano Veloso)


O homem velho deixa a vida e morte para trás
Cabeça a prumo segue rumo e nunca, nunca mais
O grande espelho que é o mundo ousaria refletir os seus sinais
O homem velho é o rei dos animais
A solidão agora é sólida, uma pedra ao sol
As linhas do destino nas mãos a mão apagou
Ele já tem a alma saturada de poesia, soul e rock'n'roll
As coisas migram e ele serve de farol
A carne, a arte arde, a tarde cai
No abismo das esquinas
A brisa leve trás o olor fulgaz
Do sexo das meninas
Luz fria, seus cabelos têm tristeza de neon
Belezas, dores e alegrias passam sem um som
Eu vejo o homem velho rindo numa curva do caminho de Hebron
E ao seu olhar tudo que é cor muda de tom
Os filhos, filmes, livros, ditos como um vendaval
Espalham-no além da ilusão do seu ser pessoal
Mas ele dói e brilha único, indivíduo, maravilha sem igual
Já tem coragem de saber que é imortal

sexta-feira, julho 30, 2010

Três excertos do Livro "Eu odeio André Mussalem" que vai sair pela editora Uganir, provavelmente em Setembro. Depoimentos escolhidos por mim e pelo autor, meu amigo Zeferino.


“O que mais me irrita nele é esse adjetivo com que ele sai nomeando todo mundo: ‘querido’; ‘querida’. Ele faz isso por causa de sua incapacidade de decorar os nomes das pessoas e com isso cria uma falsa ternura, como se ele pudesse gostar de todo mundo da mesma maneira. Sempre exigi que ele me chamasse pelo nome. Um dia ele me chamou de ‘querida’ e eu estourei; tive certeza, ali, que eu era apenas mais uma”

Ana Paula – ex-namorada 1997/1998

“Tudo nele é grandioso demais, um projeto grande demais. Mas ele planeja castelos e executa biscoitos; e se você faz parte daquilo acaba se frustrando também, lógico. Quem não se frustraria? É esse negócio mesmo de comprar gato por lebre, como falam por aí. Ele te vende um revolucionário, um artista, um inconformado durante o dia. Quando chega a noite, coloca o pijama e vai dormir”

Mariana – noiva 2003/2004

“Tem uma música de Caetano que define bem ele: ‘mas na hora da cama/nada pintou direito/é minha cara falar/ não sou proveito/sou pura fama’. Acho que é por aí mesmo. Não quero falar mais, porque seria uma puta de uma indiscrição, mesmo sabendo que ele autorizou falar sobre esse assunto. Mas resumiria bem dizendo que ele faz propaganda de um leão e na cama é um gatinho (risos)”

Irma – “negócio mal resolvido” 2001/2002

quinta-feira, julho 29, 2010

Água Doce

Eu não quero amor, eu não me deixo amar
A minha vida é água doce nas águas desse mar

Esse um veio com o Mundo, com navios e canções
no seu peito tatuado, a marca de mil corações
me pegou pelos cabelos, como quem fosse naufragar
mas depois da tempestade, me deixou a ver o mar

(eu não quero amor)

Eu não quero amor, eu não me deixo amar
A minha vida é água doce nas águas desse mar

Esse outro, sorrateiro, com palavras de algodão
sussurradas no ouvido, cravadas no coração
me deu tantos outros nomes, que eu me perdi de mim
fiquei só entre as palavras, por isso hoje canto assim,

(eu não quero amor)

Eu não quero amor, eu não me deixo amar
A minha vida é água doce nas águas desse mar

E quem quiser saber de mim, pode até me encontrar
eu sou aquela que no Mundo, faz do Mundo o seu lugar
me acompanham nessa vida, só meu Deus e a lua cheia
se eu sou a escuridão de mim, eu também sou minha candeia

(eu não quero amor)

Eu não quero amor, eu não me deixo amar
A minha vida é água doce nas águas desse mar

sábado, junho 26, 2010

Seculorum

Quando me falam do século passado,
Frequentemente caio nessa dúvida: de que século falam?

Do século vinte? Com seus hiatos armados entre o terror e o sublime
O século vinte dos ratos que surgiam dos escombros
E me contavam histórias de extermínio e de grandes amores

Do século dezenove? Com sua assepsia imperial a tapar o túmulo de Deus
O século dezenove quando os grandes homens eram possíveis
E pairava no ar uma esperança de curar todas as doenças

O século dezenove sem qualquer contradição
O século vinte que, ao nascer, proclamou: eu morri
Que século passou por mim e me antecedeu?
Que porta se fechou por detrás de mim e não percebi?

Eu aqui no século vinte e um, sinto-me como um sinal neutro em relação a tudo
Nada me pertence, nem agora, nem no futuro
Sou como algo nunca criado ou nunca disposto a se reinventar
E para além de todas as contingências, permaneço alheio ao mundo
Enquanto meus filhos constroem um século para além de mim

Difícil ofício esse, de pertencer a um século.

quinta-feira, junho 17, 2010


segunda-feira, junho 14, 2010

A Morte do Jogo

“O atrativo do jogo, a fascinação que exerce, reside justamente no fato de que o jogo se assenhora do jogador.”

Gadamer, Verdade e Método.

Pour Lucas,

O modo de ser do jogo é sua fluidez. O jogo deve ser jogado. Segurar o jogo, não deixá-lo, é o anti-jogo, o não acontecer. A bola está presa no único esquema tático das seleções e das nações, pasteurizadas na preocupação excessiva com a defesa e exterminando a diversidade dos povos que nos encantava a cada quatro anos de copa. Os times africanos, os sul americanos, os asiáticos: todos são europeus, excessivamente europeus.
Meninos pretos de cabelos loiros e olhos azuis: o capital domesticou a criatividade e o que importa não é mais o jogo em si, mas a forma como se joga o jogo. O esquema tático se sobressai e domina o impulso de furar as barreiras inimigas; o impulso que é um monstro pré-cristão que não se apieda de nada.
O resultado é o descrédito no próprio jogo que se vê órfão de gols e de um deus-herói, um ponta de lança que atravesse o campo e entre como projétil trave adentro, erguendo as mãos para o céu em uma língua desconhecida.
Só um deus pode nos salvar.
Não há meio campo criativo, não existe o atacante imperial, a força física abafa a molecagem, o drible diabólico do menino crescido em várzea ou em rincão distante. É o genocídio dos reis, dos anjos de pernas tortas, das laranjas mecânicas, das tribos de verdadeiros guerreiros. É o elogio das academias, dos computadores, dos tecidos e das malhas criadas após anos de pesquisa. A assepsia venceu a lama. Mas da assepsia não se ergue a vida; da lama sim.
Aos poucos, vamos contentando-nos com essa postura tímida, de recuo, de parede. Ficamos esperando a vinda messiânica desse jogo que fluirá para além dos esquemas táticos excessivamente defensivos que se manifesta como um simulacro do que, um dia, nós chamamos de futebol.

sábado, junho 12, 2010

Fogo do Sol, Carne da Lua (ontem e hoje)




Young hearts run free (Valentine´s day)

No Second Troy (W. B. Yeats)


WHY should I blame her that she filled my days
With misery, or that she would of late
Have taught to ignorant men most violent ways,
Or hurled the little streets upon the great.
Had they but courage equal to desire?
What could have made her peaceful with a mind
That nobleness made simple as a fire,
With beauty like a tightened bow, a kind
That is not natural in an age like this,
Being high and solitary and most stern?
Why, what could she have done, being what she is?
Was there another Troy for her to burn?

terça-feira, maio 18, 2010

ANDOR

O amor nos provém de armadilhas
redondilhas, meandros, discussões
é o toque além do seu sabor
mas se me pedes prá ficar, não vou

O amor é deveras traiçoeiro
põe espada onde primeiro era paixão
põe teu sim no meu não, deserto em flor
e se me pedes prá ficar, não vou

O amor por ser mudo, às vezes cala
por ser cego, na mira, às vezes erra
por ser surdo não ouve o coração

Mas o amor por ser tudo, em nós nos fala
por ser luz, abre seus olhos em quimera
por ser nosso, preenche a amplidão

Meu amor me aceite irrestrito
pois meu grito é a véspera do beijo
eu prometo descer do meu andor
e se me pedes prá ficar, não vou
se me pedes prá ficar, não vou
se me peder prá ficar, não vou

domingo, maio 09, 2010

O Som do Meu Medo

Quando passei quarenta dias no deserto
Sentado à margem dos meus medos e desejos
O diabo não me disse nada
Apenas me olhou e seus olhos eram castanhos
Não me ofereceu banquete, talheres de prata em rara cascata
Animais plenos de sabor e doçura enfileirados na oferta à minha língua
Calado ficou a olhar para mim

Não abriu seus dedos e convocou todas as potestades
Não me prometeu revelar a matéria inexata e imperfeita
Que é cimento e areia da coisa fêmea
Não me assegurou qualquer milagre
Sequer tirou uma moeda por detrás da minha orelha

Entre nós não havia o Mundo, apenas o silêncio

O silêncio que é a maior de todas as tentações

quarta-feira, maio 05, 2010

No dia em que fui mais feliz


D.R.

Preciso esquecer você. Como continuar vivendo se nossa relação é o mais sublime dos gozos e a mais dolorosa das torturas? Que homem foi forjado para suportar essa oscilação de sentimentos, ao sabor do inevitável, da sorte, do fortuito? Eu quero fazer o meu leito na racionalidade, dormir nos ombros da segurança, sem a necessidade de prever o futuro, porque o presente está em minhas mãos. Com você, o futuro a deus pertence. Deus é sempre uma incógnita. O presente não diz nada. Eu brigo com meus irmãos, por sua causa. Eu grito na madrugada palavras que nunca pensei em proferir no secreto dos meus medos. Em vão, eu tateio um conforto, uma paz qualquer que assole meu espírito e me mantenha na calmaria da mediocridade. Em vão. Você vem com todo terror e benção de uma tempestade e me deixa lançado ao hiato armado entre o fio da esperança e a lágrima incontida. Você me deixa nu nas hordas do inimigo e armado no seio do meu exército. Você me faz o homem pleno de felicidade mundana e o mais miserável dos mendigos na noite silenciosa dos fogos alheios. Eu preciso esquecer você. Futebol, eu preciso me desapaixonar por você.

sexta-feira, abril 23, 2010


Ou Isto ou Aquilo

Ou Isto ou Aquilo

Cecília Meireles

Ou se tem chuva e não se tem sol,
ou se tem sol e não se tem chuva!
Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!
Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.
É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo nos dois lugares!
Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo...
e vivo escolhendo o dia inteiro!
Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranqüilo.
Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.

Ou Isto ou Aquilo foi o meu primeiro livro de poesia. Ganhei aos quatro anos de idade, quando recitei, na escola, "A Chácara do Chico Bolacha", poema constante do livro. Não sei bem o porquê, mas esse livro me veio na cabeça, hoje.

sábado, março 06, 2010

O QUE SE SABE ACERCA DO AMOR

Araras são aves monogâmicas, mas muito barulhentas
Alguns animais são hermafroditas, isso os mantêm afastados de problemas
O corpo aumenta até um grau durante o ato sexual, independente da frigidez do outro
Se você encostar um estetoscópio no meu peito, ouvirá o corvo de Edgar Alan Poe:
“nunca mais, nunca mais, nunca mais...”

quarta-feira, fevereiro 17, 2010

Despedida


Beijo no dragão

O carnaval no Túmulo do Samba

O carnaval de São Paulo tem peitão. Milhões de litros de silicone espalhados em cada uma das suas musas. O carnaval de São Paulo tem abdômen lipoaspirado, bíceps definido por halteres, botox nas rugas. Tudo nele é falso, é um simulacro do carnaval carioca, construído para dar satisfação aos paulistas e evitar o esvaziamento da cidade no reinado de Momo. Mas o carnaval de São Paulo está na mída que parece acreditar em um mínimo de espontaneidade popular por trás da força da grana que ergue e destrói coisas belas. Não importa para a televisão os folguedos populares dos rincões esquecidos pelas imagens das câmeras. Não importa o maior bloco carnavalesco do mundo. Não importa o samba de roda do recôncavo baiano. Não importa o boi do Maranhão. Os olhos da nação se voltam para a atriz nua que está na novela, para a celebridade imediata que, refletindo o carnaval paulista, construiu-se para aquele segundo de glória, rezando para que a quarta-feira logo chegasse, porque a vocação de máquina traduz o desejo de nunca mais parar.

sábado, fevereiro 13, 2010

Orecic Futebol Clube (2007)

Vamos entrar na Concórdia, quero ver quem vai passar
pois quando o frevo começa, não tem hora prá acabar
me dê a mão que o meu amor não sabe onde estou
e esse cheiro na camisa é o meu motor

No meio da Imperatriz, eu deixei meu coração
no carrossel da avenidas, minha vida vai na contramão
enquanto os homens caem na rua, eu vou me levantar
que a vida não espera o sol raiar

É fevereiro vem, a carne queima, bem
no Orecic tem uma mesa prá sentar

Equece o ano e vem, vem no meu passo, bem
A vida à toa está na mesa desse bar

Vamos entrar na Concórdia, quero ver quem vai passar
pois quando o frevo começa, não tem hora prá acabar
me dê a mão que o meu amor não sabe onde estou
e esse cheiro na camisa é o meu motor

No meio da Imperatriz, eu deixei meu coração
no carrossel da avenidas, minha vida vai na contramão
enquanto os homens caem na rua, eu vou me levantar
que a vida não espera o sol raiar

quinta-feira, fevereiro 11, 2010

SEGREGAÇÃO NO CARNAVAL E A ALAURSA DE PELÓPIDAS SOARES

Do carnaval de Pernambuco diz-se o mais democrático. Não há cordões de isolamentos como na Bahia, ou arquibancadas como na Marquês de Sapucaí, separando o povo da folia. A tradição pernambucana, noticiam os jornais, está no amálgama de gentes de classes diversas com músicos e bandidos, tudo ao mesmo tempo agora. Quando se erige uma casa patrocínio, um camarote luxuoso, um espaço para poucos, denominado VIP, logo o grito reverso se apresenta clamando pelo carnaval sem preconceito de raça, de credo e, principalmente, de classe social.

Tudo muito falso. Esse carnaval pernambucano tradicionalmente democrático só existe na cabeça de intelectuais e isso a partir da segunda metade do século XX. Que os intelectuais do século XIX, cento matriz da brincadeira moderna, torciam o nariz para o entrudo. O carnaval de rua era o espaço reservado para os forros, para os artesãos que fundavam suas troças homenageando suas funções, como o Vassouras, o Pás, o Carvoeiros, para ficar apenas em alguns.

A elite pernambucana, da aristocracia inventada, ficava nos clubes e nos teatros da capital, imitando o carnaval europeu; em uma Europa, também, inventada.

Os teatros e clubes mimetizaram-se em casas e corsos; os carros do início do século XX faziam as vezes de cordões de isolamento, e o asfalto (ou as pedras portuguesas) nunca chegava a tocar os pés de uma classe média que estava se consolidando. Só com a decadência da classe média e com a casa se aproximando cada vez mais da rua é que vemos surgir um espaço em que convive o saudosismo aristocrático do frevo de bloco com o suor enérgico do frevo de rua. O romantismo intelectual de resistência da segunda metade do século XX fortaleceu a impressão de que o carnaval, em seu nascedouro, é uma festa essencialmente popular.

Para mim, a tradução literária disso que escrevi até aqui: que a segregação (e a negação dela) também faz parte do carnaval está em um belíssimo conto de um dos grandes autores pernambucano (para mim, o maior contista do Brasil), Pelópidas Soares. O conto, denominado Alaursa trata das desventuras de um cortador de cana, feio como o diabo, que supera todas as suas tristezas morais no carnaval, quando se transfigura em uma alaursa e transcende sua triste figura. Paralelamente a esse anti-herói, o autor desenha um quadro aristocrático de uma família natural de Catende, cujo patriarca é um riquíssimo médico, hoje residente no Recife, e que comemora o carnaval em uma fazenda bucólica com uísque escocês e com uma radiola a tocar o frevo mecânico.

Até que um jovem não identificado, mas que deve ser desses jovens românticos da década de sessenta, inflama na aristocracia brincante a idéia de ir até o clube popular da cidade para se misturar com o volksgeist de fevereiro. O patriarca da família acha a idéia horrível, mas é vencido pelo espírito intelectual da juventude. No clube popular, tudo é festa ao redor da alaursa.

A aristocracia bebe e brinca no meio da turba. Entre os aristocratas, está a esposa do médico patriarca, uma jovem senhora educada na Europa, belíssima e moderna; animada com a possibilidade de conhecer, ali, o “verdadeiro” carnaval. Embriagada ela dança com a alaursa. Até que só ficam os dois no meio do salão. O cortador de cana, rejeitado por todas as mulheres, percebe ali uma oportunidade ímpar. Leva-a para um canto longe dos olhos ébrios da multidão e (usarei o termo correto) dá uma senhora trepada com a curiosa cidadã do mundo. Ao cair em si, após o gozo, a esposa do rico médico se depara com a máscara da alaursa e com todo o significado de um carnaval sem amarras, elogio do grotesco. Ela grita e corre desatinada. O cortador de cana dorme como uma criança ao som do frevo a embalar seus sonhos sem amanhã.

Post scriptum 1 – Esse texto não é uma apologia à segregação, mas uma constatação de fato. Pessoalmente, e a partir de uma análise psicossocial do carnaval (ou coisa que o valha), acho que o carnaval só tem sentido na libertação de todas as amarras, incluindo as sociais. Por isso, usamos máscaras. Carnaval com ar condicionado e com garçom será sempre o anti-carnaval.

Post scriptum 2 – Moral da estória: Só brinca carnaval de verdade quem tem coragem de encarar o pau da alaursa

quarta-feira, janeiro 27, 2010

Por que esse poema sempre encaixa

Belo belo minha bela
Tenho tudo que não quero
Não tenho nada que quero
Não quero óculos nem tosse
Nem obrigação de voto
Quero quero
Quero a solidão dos píncaros
A água da fonte escondida
A rosa que floresceu
Sobre a escarpa inacessível
A luz da primeira estrela
Piscando no lusco-fusco
Quero quero
Quero dar a volta ao mundo
Só num navio de vela
Quero rever Pernambuco
Quero ver Bagdá e Cusco
Quero quero
Quero o moreno de Estela
Quero a brancura de Elisa
Quero a saliva de Bela
Quero as sardas de Adalgisa
Quero quero tanta coisa
Belo belo
Mas basta de lero-lero
Vida noves fora zero.

M. Bandeira

terça-feira, janeiro 05, 2010


SAUDAÇÃO A ALVARO DE CAMPOS

Portugal-Desvelado, dezesseis de dezembro de dois mil e nove
Evoé!

Da tua terra eternamente estrangeira, imune à passagem das horas e dos séculos
Saúdo-te, Álvaro, meu torturador feroz, irmanado nas minhas chagas universais
Ó homicida das sensações católicas, engenheiro da obra infinitamente incompleta
Puta de todas as indisposições do sentir
(eu que as sinto nesse grito mudo que dou)
Grande prostituta a dar-se para todos os recôncavos da alma negra
Primeiro de todos os meus mestres que ingressaram a fórceps pelos meus poros

Homem chamado Álvaro ou André, a sair perpetuamente de casa
Repetição homérica de todos os poetas que para o serem
Sangraram as mãos nas cordas firmes das naus sem nomes e se lançaram aos mitos
Ulisses elétrico do século vinte
Predecessor de todas as guerras e ratos que fizeram de cada racionalidade
um impulso elétrico que, em mim, nunca se dissipou.

Eu, com minha face branda e minhas mãos pensas,
Com meu terno roto de tanto porto e navios e pontes e gentes
Venho beijar-te as mãos, como faria com a virgem sempre imaculada
Por reconhecer em ti todas as religiões, mesmo as que foram negadas
E saudar-te como quem saúda um monólito imenso
Que é Deus e carne ao mesmo tempo

Olha, que já vem se prenunciando o grande tempo
E uma orgia de coisas já grita a sua hora: é carnaval, Álvaro, homem de coisas imensas
Vem comigo perder-se na insupeição do homem alheio
Dá-me cá tua mão e teu suor e tua metafísica
Grita, como gritaste do Grande Cais e não sabia onde ias
Que só há verdade em não saber aonde vamos
Deixa-te levar comigo na correnteza dos devaneios
Para que tenhamos mil braços, dezenove mil pernas e nenhum pensamento;
Nenhum, por mais original que seja
Que construiremos nossa identidade na ausência sequer do pensar em nada

Evoé, irmão engenheiro, pelas coisas que sentes
Sou teu irmão porque as sinto também
Roubei-te a coisa real por dentro e a imaginada por fora
(Quantas coisas eu roubo e proclamo-as minhas.
eu mesmo roubado de mim, sou proclamado meu)
Roubei-te mas não faz mal, porque sou o teu irmão
Roubei-te mas não faz mal, porque não sou eu.

Era preciso que eu sofresse dessa febre e cólera
Era preciso que eu estive ciente do meu passo para morte
Para que pudesse cantar este canto como quem rasga o corpo de um inimigo
Um canto trespassado na alma pelos espíritos dos facínoras e dos santos
E já não ser eu mas uma turba logicamente indefinida
A invadir as igrejas e os parlamentos em nome de nada

Ó tu que és nada, homem-Álvaro imenso
És a contracorrente dessa matéria, desse piano de cauda, dessa moça a dar com paus
Estás no meu impulso de lançar-me à transitoriedade
Estás no ponto cego dos retrovisores dos carros a seguir na estrada
Estás na dúvida entre ser Deus e ir à Tabacaria
Estás em mim como uma sífilis que anuncia à cidade os meus pecados

E eu, nu, como as prostitutas rechaçadas dos fins-de-semana
Solitário e circunspeto como cada uma delas
Faço-te festa no universo, irmão Álvaro
Vou buscar-te uma mentira para além da nossa galáxia
A mentira de saber-me aqui a cantar-te isso
De estar sentado em dúvida desse próximo verso
Aguardando minha esposa e ouvindo o banho da minha filha
Eu não sou nada disso
Nunca estive aqui
Esses versos não existem
Como nunca existiu um Álvaro de Campos
E justamente por isso, Evoé!