O Rio
Eu, que sou tudo isso para mim e nada disso para o mundo
Tenho tocado com meus dedos o que milhares de dedos tocaram antes
Tenho apoiado os meus cotovelos na mesma superfície regular que suportou os cotovelos do bancário da esquina
Tenho pisado com meus pés quilômetros de terra domada pelos que me precederam
Eu, sempre esse sorriso presumido, esse abraço aguardado, essa presença intuída
Sempre o mesmo, mesmo que sempre para olhos estranhos
Sempre aquele que não precisa de verbos ou adjetivos
Sempre o captado por um olhar furtivo pelo canto do olho
Tenho honrado meus antepassados ao amarrar os cadarços do sapato
Tenho recebido menções por fazer sempre as três refeições
Tenho engrandecido o meu espírito ao contribuir com o sistema previdenciário
(Ao passar pela mesma rua em que sempre passo, sinto que alguém me saúda
Sou saudado mais pelo gesto do que pelo homem estranho do canto da rua
Que nunca me viu, mas pensou ter-me visto sempre
E lhe sou familiar porque existo, porque falo, porque sou
Eu, que estou multiplicado no sorriso presumido, no abraço aguardado, na presença intuída
Cujos olhos são olhos e nada mais, cuja pele não é porcelana mas carne que perece
Cujos sonhos são roubados daqueles que sonharam antes de mim:
quedo homenageado pelo ato de ser apenas mais um)
Eu, que sou nada disso para mim e tudo isso para o mundo: Mais um...
Nem um Sartre a descobrir que é liberto porque é
Nem um Ford a imaginar novas formas de diminuir o mundo para nossas pernas
Nem um Judas a causar chagas em Deus e fazer isso simplesmente como quem beija...
Nem mesmo nada a se imaginar nada de tudo e por isso mesmo o fim de todas as coisas
Não, nem mesmo isso...
sexta-feira, outubro 29, 2004
O Paciente Inglês
Eu estava vindo de um combate. De mãos atadas, pois havia perdido uma batalha. Estava cego. Estava queimado. Eu tinha em mim os sons de todas as cidades: Berlim, Milão, Lisboa, Paris. Eu tinha em mim as feridas de todas as pessoas, transubstanciadas na minha exclusiva e intransferível dor. Em cada chaga havia uma sombra. Em cada sombra havia um passado. Em cada passado havia a ausência de mim. Eu que conhecia a amargura dos judeus cativos. Eu que havia penetrado Berlim com meus cadáveres. Eu que sonhava com a neve derretida em meus lábios...e isso, naquela guerra, era impossível. Então me joguei na areia. Chamava a morte e a morte não vinha. Vinha a vida e era pior que a morte. Chegava a noite e me lembrava que viria o dia. Chegava o dia e me lembrava de que existia o tempo. E quando tudo parecia que se abismava ao meu redor, uma gota de saliva tocou minha nuca. Em meio ao ensurdecedor silêncio da minha alma eu ouvi um riso. Um riso desprovido de grandes cidades, de pretensões de guerra, de conquistas de mundos...e eu que não sabia que existiam os joelhos me prostrei frente ao que eu não entendia. Minhas chagas foram pensadas sem nenhum pedido de coisa em troca. E pela primeira vez na minha vida, eu amei o outro.
Fátima...eu criei essa página para falar das coisas que não são minhas, mas são do mundo. Prometi que pouco diria de mim mesmo, embora quedasse sempre descoberto em cada poema que aqui publicasse. Você me pediu um poema, mas não posso forçá-lo. Eu o chamei e ele não veio. Ele virá novamente, como um cavalo insubordinado, que ama o homem a distância, ele se aproximará para comer esse torrão de açúcar que estou a oferecer. Mas se não posso lhe dar o poema, que a prosa lhe diga: sim, eu hei de nascer ao seu lado. Diuturnamente. Em ti, eu encontrei o prêmio nobel da minha paz.
Fátima...eu criei essa página para falar das coisas que não são minhas, mas são do mundo. Prometi que pouco diria de mim mesmo, embora quedasse sempre descoberto em cada poema que aqui publicasse. Você me pediu um poema, mas não posso forçá-lo. Eu o chamei e ele não veio. Ele virá novamente, como um cavalo insubordinado, que ama o homem a distância, ele se aproximará para comer esse torrão de açúcar que estou a oferecer. Mas se não posso lhe dar o poema, que a prosa lhe diga: sim, eu hei de nascer ao seu lado. Diuturnamente. Em ti, eu encontrei o prêmio nobel da minha paz.
quinta-feira, outubro 28, 2004
Geografia da terra seca e do papel
Eu sou adepto da poesia pela pedra. A poesia pensada e perene. Fazer poesia é antes de tudo pensar a poesia; interpretar o que cerca o homem de uma forma poética, mas sem "poetizar o poema". Não consigo exergar poesia na poesia que é fruto da alma derramada em fluxos constantes de amor lírico. Por isso ponho-me de encontro àqueles que exergam o derrame em poetas como Fernando Pessoa, Manuel Bandeira ou mesmo Pablo Neruda. É uma falácia. São todos sapos tanoeiros fazendo e refazendo a linguagem coloquial de maneira pensada, mas sob um verniz de impulso d´alma que aparentemente esconde o processamento do mundo através da reconstrução lingüística.
É preciso mãos de artesão. E isso nem todo mundo tem.
(À Rodrigo, que já havia intuído isso em o
"Verso e o Seco")
Geografia da terra seca e do papel
Teu instrumento é a terra seca, esta que tudo impede
Mas que abre a carne seca para algo, tão mais molhado quanto agreste
Algo que a seca veste, mas não corrompe nem alivia
Algo que faz parte da terra seca e na terra seca busca alforria
Algo que desfaz a terra seca e a mesma terra seca depois principia
Em outra superície seca, porém mais branca do que a que antecedia
O papel essa nova terra seca, onde escrevemos nossa geografia
E o molhamos com nossa veia aberta a terra seca que em nós existia
É preciso mãos de artesão. E isso nem todo mundo tem.
(À Rodrigo, que já havia intuído isso em o
"Verso e o Seco")
Geografia da terra seca e do papel
Teu instrumento é a terra seca, esta que tudo impede
Mas que abre a carne seca para algo, tão mais molhado quanto agreste
Algo que a seca veste, mas não corrompe nem alivia
Algo que faz parte da terra seca e na terra seca busca alforria
Algo que desfaz a terra seca e a mesma terra seca depois principia
Em outra superície seca, porém mais branca do que a que antecedia
O papel essa nova terra seca, onde escrevemos nossa geografia
E o molhamos com nossa veia aberta a terra seca que em nós existia
quarta-feira, outubro 27, 2004
Shylock
Era apenas um gato para mim; hoje é um espelho. Sou devoto de sua fidelidade canina (ops!) que me acompanhou em momentos de tormenta e de calmaria. Tem gente que até reclama seu dominus. Tola gente. Shylock não pertence a ninguém, nós que pertencemos a ele. E em mim reside a certeza de que, acima de todas as coisas, ele me escolheu como parte inafastável de sua vida. Estaremos juntos por tantas tormentas e calmarias quanto existirem mundo afora. Ninguém nos impede. Nem a calma do vento. Nem a fúria do mar.
Sua ode, meu filho...
Ode a Shylock
Excelentíssimo Senhor da minha concentração
Marquês das roupas estiradas na cama, ou em qualquer lugar mínimo que lhe pareça aconchego
Duque da vista da minha varanda, cuidadosamente colocada por Deus, unicamente para o seu deleite
Sire do Mundo todo que presumimos por todo
Milord
Permita-me dois dedos de meus poemas, para dizer-lhe o que não precisas ouvir:
A tua cauda aponta para a via Láctea, os teus olhos apontam para o que tu queres
És o conquistador terrível das tuas vontades, a polícia desbravadora do que não sabes
O sorriso oculto em Da Vinci, que se equivocou ao pintar uma reles
Quando toda a explicação reside no sorriso que dás e que olhos comuns não percebem
Esticador hábil do próprio corpo, que faz dele a ponte entre o prazer e o deleite
Mestre das próprias unhas, elegantemente dispostas ao ato de apenas dizer-lhes:
“eu as tenho”
e calado mostrar quatro bainhas que, de tão nobres,
faz-te apenas expectar que as aceitem
Cavaleiro do próprio corpo, que não precisas de qualquer outro pra completar o trote
Ser completo em si mesmo, dono do próprio dote
Eu quero cantar-te porque só sei de mim se contigo, porque não és meu amigo mas mi lorde
Eu que nada sou, nem poeta, nem gente, nem nunca serei nobre
Curvo-me ao que não entendo: letra, ouro, corvo e sorte
Curvo-me então aos teus olhos que reclamam a propriedade
Do meu corpo, dos meus bens, de tudo que percebem e colhem
Pois é este o ato maior de Deus: de ser senhor de tudo o quanto se pode
E ainda assim, nesta que é a maior de todas as posses, deitar diante de mim
E ofertar-me. O prazer de ser seu senhor e aplacar minha sede
De não querer ser gente mas este
Mistério indecifrável que tem a mim e eu a ele.
Sua ode, meu filho...
Ode a Shylock
Excelentíssimo Senhor da minha concentração
Marquês das roupas estiradas na cama, ou em qualquer lugar mínimo que lhe pareça aconchego
Duque da vista da minha varanda, cuidadosamente colocada por Deus, unicamente para o seu deleite
Sire do Mundo todo que presumimos por todo
Milord
Permita-me dois dedos de meus poemas, para dizer-lhe o que não precisas ouvir:
A tua cauda aponta para a via Láctea, os teus olhos apontam para o que tu queres
És o conquistador terrível das tuas vontades, a polícia desbravadora do que não sabes
O sorriso oculto em Da Vinci, que se equivocou ao pintar uma reles
Quando toda a explicação reside no sorriso que dás e que olhos comuns não percebem
Esticador hábil do próprio corpo, que faz dele a ponte entre o prazer e o deleite
Mestre das próprias unhas, elegantemente dispostas ao ato de apenas dizer-lhes:
“eu as tenho”
e calado mostrar quatro bainhas que, de tão nobres,
faz-te apenas expectar que as aceitem
Cavaleiro do próprio corpo, que não precisas de qualquer outro pra completar o trote
Ser completo em si mesmo, dono do próprio dote
Eu quero cantar-te porque só sei de mim se contigo, porque não és meu amigo mas mi lorde
Eu que nada sou, nem poeta, nem gente, nem nunca serei nobre
Curvo-me ao que não entendo: letra, ouro, corvo e sorte
Curvo-me então aos teus olhos que reclamam a propriedade
Do meu corpo, dos meus bens, de tudo que percebem e colhem
Pois é este o ato maior de Deus: de ser senhor de tudo o quanto se pode
E ainda assim, nesta que é a maior de todas as posses, deitar diante de mim
E ofertar-me. O prazer de ser seu senhor e aplacar minha sede
De não querer ser gente mas este
Mistério indecifrável que tem a mim e eu a ele.
quinta-feira, outubro 21, 2004
Corrupção: Você ainda vai se deparar com uma
Felizes os que não vêem a face da coisa pública. Porque esses herdarão o reino dos céus(nem que subornem São Pedro para entrar)
André e a Quimera
Crio, em minha casa, uma quimera.
Colhida à rua, ainda pequena,
Atraiu-me seus olhos puros
Sua meninice mitológica ainda reticente
reticente como eu me encontro frente a este poema,
tomei-a nos meus braços e fiz-lhe meu canto:
Alegra-me sua pureza quase indecente de verdade tão grega
Essa coisa pequena alheia às circunstâncias do mundo que chamamos moderno
sem qualquer condescência à hierarquia dos justos
Livre dos esquemas e das tramas que nos exigem o dia.
É apenas uma quimera que brinca (ora dorme, ora ri)
E não lhe aturde a estampa jornalística que denuncia a verdade comprada
Ela sequer sabe dos subterfúgios disfarçados de coisa-bela
Das togas, dos ternos, das peles
Humildemente estendidas à passagem do que lhes é maior
Eu a crio assim
(circunscrita à sua infância
essa era maniqueísta que diz: feio, bonito
Bom, mau
Ao passo que a maturidade é a relativização de todas as coisas
E dizemos: não é bem assim
A justiça não é bem assim
A verdade não é bem assim
O homicídio não é bem assim
Deixamos subornar os postulados que um dia nos foram caros
Mas suborno não é bem assim
Salvaguardarei essa minha quimera
Sequer lhe contarei meus próprios pecados
Há de doer em mim a solidão da penitência subjetiva, do chicote imaginário
mas não lhe contarei o meu maior erro:
o pecado de ver e achar normal,
ver a normalidade normalmente normatizada
(e restar calado como homem rico que devora com os olhos o pão roubado
e virtualmente o come ainda que de barriga cheia
que seu sabor não vem da matéria mas dantes da própria fome inexistente)
eu findo por achar normal minha admiração contida em recurso viciado
Achar coloquial, o estupro
Cotidiano, o descaso
E eu digo sim, omissivamente. Sim ! ainda que calado.
Ato! ainda que parado
(eu pecarei por simplesmente existir)
Por isso não cedo informações à minha quimera
Que país é esse? Nenhum
Que democracia é essa? Alguma
Quem governa esta terra? Ninguém
Ser-lhe-ia melhor surdez ante tantos sussurros
Ser-lhe-ia melhor o silencio perante a palavra estuprada
Ser-lhe-ia melhor a cegueira diante da imagem glorificada
Ser-lhe-á benéfico o ateísmo na terra dos deuses nomeados.
Qualquer cortina fechada servir-lhe-á de janela
Janela de mim-para-mim, salva-me ! Purifica-me na ignorância ilusória de não ver
Não quero ver esta festa em que se decidem os nossos destinos
Onde tantos favores serão servidos em pratos de bronze
(e eu rezarei ao Deus velho, o Deus do velho testamento
para que o mundo dos probos seja devorado pelas águas impuras do ópio popular)
Mas ó coação irresistível que é meu sobrenome: à festa, eu irei...
A festa é meu fim.
Hoje eu sou o filho
amanhã serei o pai
e por fim, o busto
Morrerei acorrentado às minhas flexibilidades.
Por isso, esse meu ofício: de guardar a pequena quimera em minha casa
E em minha casa fazer-lhe o berço-ilha de tudo que achamos por verdade
Um dia ela crescerá e se tornará o monstro, tal qual nas fábulas gregas
E devorar-me-á, selvagem, com seus olhos de besta
Pondo termo enfim a essa minha existência acorrentada
Eu serei devorado pela coisa pura
E para a coisa pública quedarei como verdade não alcançada.
André e a Quimera
Crio, em minha casa, uma quimera.
Colhida à rua, ainda pequena,
Atraiu-me seus olhos puros
Sua meninice mitológica ainda reticente
reticente como eu me encontro frente a este poema,
tomei-a nos meus braços e fiz-lhe meu canto:
Alegra-me sua pureza quase indecente de verdade tão grega
Essa coisa pequena alheia às circunstâncias do mundo que chamamos moderno
sem qualquer condescência à hierarquia dos justos
Livre dos esquemas e das tramas que nos exigem o dia.
É apenas uma quimera que brinca (ora dorme, ora ri)
E não lhe aturde a estampa jornalística que denuncia a verdade comprada
Ela sequer sabe dos subterfúgios disfarçados de coisa-bela
Das togas, dos ternos, das peles
Humildemente estendidas à passagem do que lhes é maior
Eu a crio assim
(circunscrita à sua infância
essa era maniqueísta que diz: feio, bonito
Bom, mau
Ao passo que a maturidade é a relativização de todas as coisas
E dizemos: não é bem assim
A justiça não é bem assim
A verdade não é bem assim
O homicídio não é bem assim
Deixamos subornar os postulados que um dia nos foram caros
Mas suborno não é bem assim
Salvaguardarei essa minha quimera
Sequer lhe contarei meus próprios pecados
Há de doer em mim a solidão da penitência subjetiva, do chicote imaginário
mas não lhe contarei o meu maior erro:
o pecado de ver e achar normal,
ver a normalidade normalmente normatizada
(e restar calado como homem rico que devora com os olhos o pão roubado
e virtualmente o come ainda que de barriga cheia
que seu sabor não vem da matéria mas dantes da própria fome inexistente)
eu findo por achar normal minha admiração contida em recurso viciado
Achar coloquial, o estupro
Cotidiano, o descaso
E eu digo sim, omissivamente. Sim ! ainda que calado.
Ato! ainda que parado
(eu pecarei por simplesmente existir)
Por isso não cedo informações à minha quimera
Que país é esse? Nenhum
Que democracia é essa? Alguma
Quem governa esta terra? Ninguém
Ser-lhe-ia melhor surdez ante tantos sussurros
Ser-lhe-ia melhor o silencio perante a palavra estuprada
Ser-lhe-ia melhor a cegueira diante da imagem glorificada
Ser-lhe-á benéfico o ateísmo na terra dos deuses nomeados.
Qualquer cortina fechada servir-lhe-á de janela
Janela de mim-para-mim, salva-me ! Purifica-me na ignorância ilusória de não ver
Não quero ver esta festa em que se decidem os nossos destinos
Onde tantos favores serão servidos em pratos de bronze
(e eu rezarei ao Deus velho, o Deus do velho testamento
para que o mundo dos probos seja devorado pelas águas impuras do ópio popular)
Mas ó coação irresistível que é meu sobrenome: à festa, eu irei...
A festa é meu fim.
Hoje eu sou o filho
amanhã serei o pai
e por fim, o busto
Morrerei acorrentado às minhas flexibilidades.
Por isso, esse meu ofício: de guardar a pequena quimera em minha casa
E em minha casa fazer-lhe o berço-ilha de tudo que achamos por verdade
Um dia ela crescerá e se tornará o monstro, tal qual nas fábulas gregas
E devorar-me-á, selvagem, com seus olhos de besta
Pondo termo enfim a essa minha existência acorrentada
Eu serei devorado pela coisa pura
E para a coisa pública quedarei como verdade não alcançada.
quarta-feira, outubro 20, 2004
segunda-feira, outubro 18, 2004
Aos que estão longe de Sevilha
Sevilha e flamenco. Sevilha e vinho. Sevilha e lulas. Sevilha e ciganas. Sevilha e João Cabral. Para quem nunca foi, para quem sente saudades, para quem quer voltar: Sevilha e dança - ainda que nós quedemos imóveis.
A Dança Imóvel de Sevilha
Dança como a catedral imóvel, que de si a si principia
A dança dos que não se movem - mas sonham com essa ousadia
Dança como a faca embainhada, presa na carne-bainha
Embora contida na carne - faz temer quem anda na linha
Dança como a semente intacta (virgem de vida explodida)
Move-se no sonho de árvore, antecipando a próxima vida
Dança como o touro cego que pressente o que se anuncia
A morte - essa bailada – e, parado, se joga à alforria
Dança como o fogo extinto que em suas cinzas traduz minha calma
Preparando-se para ser novo fogo, enquanto - chama - dança na alma
A Dança Imóvel de Sevilha
Dança como a catedral imóvel, que de si a si principia
A dança dos que não se movem - mas sonham com essa ousadia
Dança como a faca embainhada, presa na carne-bainha
Embora contida na carne - faz temer quem anda na linha
Dança como a semente intacta (virgem de vida explodida)
Move-se no sonho de árvore, antecipando a próxima vida
Dança como o touro cego que pressente o que se anuncia
A morte - essa bailada – e, parado, se joga à alforria
Dança como o fogo extinto que em suas cinzas traduz minha calma
Preparando-se para ser novo fogo, enquanto - chama - dança na alma
quarta-feira, outubro 13, 2004
Viajar é se perder - Na Estrada de Sintra
Moscou ou João Pessoa, a essência do ato de viajar é a mesma. Não importa o veículo ou a distância, o desejo é de se perder. Para que possamos nos perder é necessário deixar para trás a nossa identidade, nossos signos, nossas circusntâncias.
Quando desculpamos o ato de deixar nossa casa com o descanso para o enfado da alma, queremos não ser mais os mesmos porque estamos enfadados de nós; queremos nos perder longe dos nossos próprios braços.
Nesse breve espaço de tempo, circunstanciado na viagem, descansaremos de nós no outro, estaremos despertos para as diferenças culturais e sociais.Assim, esqueceremos um pouco essas circunstâncias cotidianas que nos constituem.
E quando retornamos ("retornar é partir novamente") poderemos nos ver mais inteiros, mais completos porque nos perdemos.
Viajar é preciso: só nos perdendo poderemos nos achar. Ok, isso é um clichê...mas foi isso que Álvaro de Campos nos legou nesse belo poema que passo a transcrever.
E hoje, só hoje, não chatearei vocês com meus poemas...que venha a qualidade:
Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra, Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?
Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa. Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem conseqüência, Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida...
Maieável aos meus movimentos subconscientes do volante,
Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram eu sigo no mundo
Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!
À esquerda o casebre — sim, o casebre — à beira da estrada
À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
É agora uma coisa onde estou fechado
Que só posso conduzir se nele estiver fechado,
Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.
À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.
A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz. Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima
Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real. Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha
No pavimento térreo, Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,
E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi. Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?
Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio?
Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite, Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente, Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,
E, num desejo terrível, súbido, violento, inconcebível,
Acelero... Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo,
À porta do casebre, O meu coração vazio, O meu coração insatisfeito, O meu coração mais humano do que eu, mais exato que a vida.
Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao votante,
Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,
Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim...
(Álvaro de Campos)
Quando desculpamos o ato de deixar nossa casa com o descanso para o enfado da alma, queremos não ser mais os mesmos porque estamos enfadados de nós; queremos nos perder longe dos nossos próprios braços.
Nesse breve espaço de tempo, circunstanciado na viagem, descansaremos de nós no outro, estaremos despertos para as diferenças culturais e sociais.Assim, esqueceremos um pouco essas circunstâncias cotidianas que nos constituem.
E quando retornamos ("retornar é partir novamente") poderemos nos ver mais inteiros, mais completos porque nos perdemos.
Viajar é preciso: só nos perdendo poderemos nos achar. Ok, isso é um clichê...mas foi isso que Álvaro de Campos nos legou nesse belo poema que passo a transcrever.
E hoje, só hoje, não chatearei vocês com meus poemas...que venha a qualidade:
Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra, Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?
Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa. Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem conseqüência, Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida...
Maieável aos meus movimentos subconscientes do volante,
Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram eu sigo no mundo
Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!
À esquerda o casebre — sim, o casebre — à beira da estrada
À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
É agora uma coisa onde estou fechado
Que só posso conduzir se nele estiver fechado,
Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.
À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.
A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz. Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima
Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real. Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha
No pavimento térreo, Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,
E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi. Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?
Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio?
Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite, Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente, Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,
E, num desejo terrível, súbido, violento, inconcebível,
Acelero... Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo,
À porta do casebre, O meu coração vazio, O meu coração insatisfeito, O meu coração mais humano do que eu, mais exato que a vida.
Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao votante,
Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,
Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim...
(Álvaro de Campos)
sexta-feira, outubro 08, 2004
A minha irmã
Fazer anos é belo e doloroso. E solitário. Poucos percebem...absortos nos presentes e nos amigos e no copo de refrigerante que acabou de cair no chão. Mas pode ser um novo ponto de partida para se fazer outro ano, basta assim o querer. Minha irmã, eu te amo e desejo a ti tudo que houver de vida nesta vida. Quero você intensa como seu sangue que corre em minhas veias. Um beijo -
André
GARE DO MAR
Gare do mar
um gosto de partida que entorpece o sonho ao fazermos anos
e não sabemos mais o que somos, mas o que fomos
irmanados no vaso que se quebrou e que se jogou fora
como ele morremos para vida e nascemos para a memória
Seremos sempre a foto tirada descuidadosamente por um Deus
ou por nós mesmos – a sonhar à parte disso tudo que chamamos de vida
já mortos para nós e vivos para a impressão
seremos sempre os que fazem anos com um gosto de partida
para a Gare do mar – irmanados no vaso, como na foto, como no sonho
André
GARE DO MAR
Gare do mar
um gosto de partida que entorpece o sonho ao fazermos anos
e não sabemos mais o que somos, mas o que fomos
irmanados no vaso que se quebrou e que se jogou fora
como ele morremos para vida e nascemos para a memória
Seremos sempre a foto tirada descuidadosamente por um Deus
ou por nós mesmos – a sonhar à parte disso tudo que chamamos de vida
já mortos para nós e vivos para a impressão
seremos sempre os que fazem anos com um gosto de partida
para a Gare do mar – irmanados no vaso, como na foto, como no sonho
quinta-feira, outubro 07, 2004
Os carnavais saudosos
Uma menina linda me fez recordar o carnaval. Ainda em Outubro, eu já sinto a anunciação da carne, o re-ligar com tradições tão ancestrais quanto a prostituição. Lógica malévola essa que permite o desbunde em quatro dias, antes de apiedar-mo-nos de nós mesmos e clamar a misericórdia das cinzas frente ao madeiro (que o cupim não rói). Eu mal posso esperar pela chegança do mar de gente...e ainda é Outubro. Meus pares entendem essa agonia, faz parte da vida da gente (menos de Sandro que agora curte a Love Parade na Alemanha). Esse hiato de tempo roto é que dá a conotação de tristeza e saudade do carnaval; por isso eu misturei Fernando Pessoa e Capiba na canção que eu fiz para inaugurar meu carnaval revolucionário deste ano que já vai embora (mas qual carnaval não revoluciona?). Sem delongas:
Árvore de Maravilha:
Eu quero a carne do impossível entre os meus dentes
quero ser a vã semente que você não vai plantar
para germinar entre meus pares em degredo
(vou contar-lhes um segredo, meu degredo é o carnaval)
Eu quero a estrela mais remota da existência
quero perder a minha essência na essência da ilusão
e ter por máscara a árvore de maravilha
para ela reinar na minha ilha onde reina a solidão
Árvore de maravilha tu és mãe e filha do que um dia eu fui
árvore de maravilha tu és mãe e filha do que um dia eu fui
Eu quero a sorte de ficar na tua lembrança
como um sonho de infância que nunca se perdeu
e retomar o nosso encontro algum dia
sob o signo da alforria que só há no beijo teu
Eu quero deusas, quero a fronte coroada
a moça rosa e dourada que de mim se desgarrou
e entre meus blocos a árvore de maravilha
pavilhão da minha ilha, monumento ao meu amor
Árvore de maravilha, tu és mãe e filha do que hoje eu sou
árvore de maravilha tu és mãe e filha do que hoje eu sou
Árvore de Maravilha:
Eu quero a carne do impossível entre os meus dentes
quero ser a vã semente que você não vai plantar
para germinar entre meus pares em degredo
(vou contar-lhes um segredo, meu degredo é o carnaval)
Eu quero a estrela mais remota da existência
quero perder a minha essência na essência da ilusão
e ter por máscara a árvore de maravilha
para ela reinar na minha ilha onde reina a solidão
Árvore de maravilha tu és mãe e filha do que um dia eu fui
árvore de maravilha tu és mãe e filha do que um dia eu fui
Eu quero a sorte de ficar na tua lembrança
como um sonho de infância que nunca se perdeu
e retomar o nosso encontro algum dia
sob o signo da alforria que só há no beijo teu
Eu quero deusas, quero a fronte coroada
a moça rosa e dourada que de mim se desgarrou
e entre meus blocos a árvore de maravilha
pavilhão da minha ilha, monumento ao meu amor
Árvore de maravilha, tu és mãe e filha do que hoje eu sou
árvore de maravilha tu és mãe e filha do que hoje eu sou
quarta-feira, outubro 06, 2004
Mais um poema erótico
Isso aqui está parecendo dia de ação de graças em uma mesa Amish. Ao inferno com o puritanismo: mais um poema erótico.
Cavalgar a mulher madura
Cavalgar a mulher madura é não doma-la
Deixar livre o campo do peito para ser pisado
Entre as pernas da mulher madura colher o reinado
Que deixaste escapar das mãos ao corteja-la
É deixar de ser forte e firme e tanto homem
Quanto o que te fizeram crer na tua infância
Quedarás mais por fêmea quando em ânsia
Render-te aos desejos de mulher que te consomem
Saborear o gosto da vulva percorrida
Não ter ciúmes da tua inexistência no passado
Se percorreram dantes o que hoje estás fadado
Agradeça em suas pernas a experiência dividida
Cavalgar a mulher madura é ter no falo
Várias mulheres e homens que lhe são estranhos
Desejar a sela entre os pelos castanhos
Presumir que monta, o pobre cavalo
Cavalgar a mulher madura
Cavalgar a mulher madura é não doma-la
Deixar livre o campo do peito para ser pisado
Entre as pernas da mulher madura colher o reinado
Que deixaste escapar das mãos ao corteja-la
É deixar de ser forte e firme e tanto homem
Quanto o que te fizeram crer na tua infância
Quedarás mais por fêmea quando em ânsia
Render-te aos desejos de mulher que te consomem
Saborear o gosto da vulva percorrida
Não ter ciúmes da tua inexistência no passado
Se percorreram dantes o que hoje estás fadado
Agradeça em suas pernas a experiência dividida
Cavalgar a mulher madura é ter no falo
Várias mulheres e homens que lhe são estranhos
Desejar a sela entre os pelos castanhos
Presumir que monta, o pobre cavalo
Carta
Carta bem escrita e tão bom quanto cheiro de café quente no frio. Poucos (as) são os que fazem cartas tão belas que poderiam ser facilmente publicadas em um coletânea de boas coisas da vida. Eu tive a sorte de receber uma carta tão bela que nunca me saiu da cabeça. Serei discreto com o nome de quem me enviou. Se ela entrar por aqui, ela saberá.
"Fiquei pensando em uma forma de agradecer pelo presente, às vezes demoro tanto pra dizer as palavras certas que chego a virar folhas...
É como um bom samba mesmo, aquele que chega de mãos dadas com a lua e sai derramando pela boca da noite todos os propósitos da vida. Ao me deparar com o gesto, não sei como não deixar o encanto não vir; chego a pedir licença ao tempo para retrocedê-lo:
- Em que momento chegastes a pensar nesse mimo?
Talvez o acaso possa responder-me e, mesmo não podendo dizer-te tudo, admito: o teu agrado calou-me os olhos.
Então que a poesia te diga:
'-De sua formosura
deixai-me que diga
belo como o coqueiro
que vence a água marinha
- Belo porque tem do novo
a surpresa e a alegria
-Belo como a coisa nova
na prateleira vazia
- Como qualquer coisa nova
inaugurando o seu dia
- Ou como caderno novo
quando a gente o principia
- É belo porque com o novo
todo o velho contagia
- Belo porque corrompe
com sangue novo a anemia
- Infecciona a miséria
com vida nova e sadia
- Com oásis, o deserto
com ventos, a calmaria'
João Cabral de Melo Neto
Recife, quase treze de Fevereiro de dois mil e quatro"
"Fiquei pensando em uma forma de agradecer pelo presente, às vezes demoro tanto pra dizer as palavras certas que chego a virar folhas...
É como um bom samba mesmo, aquele que chega de mãos dadas com a lua e sai derramando pela boca da noite todos os propósitos da vida. Ao me deparar com o gesto, não sei como não deixar o encanto não vir; chego a pedir licença ao tempo para retrocedê-lo:
- Em que momento chegastes a pensar nesse mimo?
Talvez o acaso possa responder-me e, mesmo não podendo dizer-te tudo, admito: o teu agrado calou-me os olhos.
Então que a poesia te diga:
'-De sua formosura
deixai-me que diga
belo como o coqueiro
que vence a água marinha
- Belo porque tem do novo
a surpresa e a alegria
-Belo como a coisa nova
na prateleira vazia
- Como qualquer coisa nova
inaugurando o seu dia
- Ou como caderno novo
quando a gente o principia
- É belo porque com o novo
todo o velho contagia
- Belo porque corrompe
com sangue novo a anemia
- Infecciona a miséria
com vida nova e sadia
- Com oásis, o deserto
com ventos, a calmaria'
João Cabral de Melo Neto
Recife, quase treze de Fevereiro de dois mil e quatro"
segunda-feira, outubro 04, 2004
Imagens do Recife Antigo
"Essa cidade é meio bruxa, meio mágica.
Enfeitiça, quebranta,
tira as forças" (Nilo Pereira)
As cidades definem seus homens. Eu sou este que sou porque nasci aqui. O Pátio da Santa Cruz é parte indelegável da minha forma de ver o mundo.
Pátio da Santa Cruz
No Pátio da Santa Cruz, procuro em mim a razão das coisas outras
Sou invadido pelo alheamento dos homens que passam, e que não se dão conta que são homens que passam
Pois sempre nos damos por achar que quem passam são os outros
Até que nos chega a noite e nos relembra que, por sermos tempo, estamos sempre a passar
No Pátio da Santa Cruz, meridiano de mim circunstanciado aos meus sonhos
Cheiro da minha infância brasileira, da infância dos outros que passam
Mas o que sei eu dos cheiros das infâncias dos outros? O que sei eu mesmo da minha infância?
É tudo a intuição de um fio de prata, ligando uma circunstância à outra
É tudo uma trama de nós sem nos darmos conta da trama
(procuro em mim a razão das coisas outras...)
Vem em mim essa intenção maior que a noite, de saber o motivo do alheamento
De decifrar a cor antiga da casa, a posição geográfica da igreja
O símbolo do sol que,
de olhos fechados para nossos olhos abertos,
amanhece apenas para si
De domar aquilo que é um atravessar-me de sensações cotidianas que renascem de si para mim como se eu fosse a passarela de todos os homens
Como se eu fosse o tradutor juramentado das coisas que nunca foram ditas
Lá fora, no Pátio da Santa Cruz;
aqui dentro, no Pátio da Santa Cruz
Enfeitiça, quebranta,
tira as forças" (Nilo Pereira)
As cidades definem seus homens. Eu sou este que sou porque nasci aqui. O Pátio da Santa Cruz é parte indelegável da minha forma de ver o mundo.
Pátio da Santa Cruz
No Pátio da Santa Cruz, procuro em mim a razão das coisas outras
Sou invadido pelo alheamento dos homens que passam, e que não se dão conta que são homens que passam
Pois sempre nos damos por achar que quem passam são os outros
Até que nos chega a noite e nos relembra que, por sermos tempo, estamos sempre a passar
No Pátio da Santa Cruz, meridiano de mim circunstanciado aos meus sonhos
Cheiro da minha infância brasileira, da infância dos outros que passam
Mas o que sei eu dos cheiros das infâncias dos outros? O que sei eu mesmo da minha infância?
É tudo a intuição de um fio de prata, ligando uma circunstância à outra
É tudo uma trama de nós sem nos darmos conta da trama
(procuro em mim a razão das coisas outras...)
Vem em mim essa intenção maior que a noite, de saber o motivo do alheamento
De decifrar a cor antiga da casa, a posição geográfica da igreja
O símbolo do sol que,
de olhos fechados para nossos olhos abertos,
amanhece apenas para si
De domar aquilo que é um atravessar-me de sensações cotidianas que renascem de si para mim como se eu fosse a passarela de todos os homens
Como se eu fosse o tradutor juramentado das coisas que nunca foram ditas
Lá fora, no Pátio da Santa Cruz;
aqui dentro, no Pátio da Santa Cruz
sábado, outubro 02, 2004
Sandro, seu filha de uma puta
Sandroca:
Parece que pedantismo vai mesmo invadir a Alemanha. Não bastasse a penca de filósofos alemães que somos obrigados a ler, ainda teremos que aguentar você daqui a quatro anos, mais insuportável do que nunca, falando alemão e metendo o pau na cultura brasileira. Não sei se meu saco escrotal tem pele o suficiente para suportar o esticamento que advirá da sua chegada no aeroporto. Mas tenha certeza de uma coisa: eu estarei lá. Estaremos todos juntos, tal qual nesse sábado esquisito em que você saiu chorando pelo lado errado do portão. Adauto chorou. Eu não. Estou feliz por você. Você quis isso mais do que qualquer coisa. Invejou doentemente os que lá já estavam. Você conseguiu. Vá tomar no cu por isso. É como saudamos os felizes. Você vai sentir saudade seu merda, ainda que não o admita, fazendo essa pose de superioridade intelectual que deixa você ainda mais com cara de mané. Você vai ser um ponto de saudade em uma terra branca, asséptica e correta como um relógio suíço. Saudade só existe na língua portuguesa, e essa língua vai te fazer tanta falta quanto o gosto de feijão e o cheiro do mar que não vem. Mas seu copo de cerveja está lá imexível, intocável na mesa de qualquer bar que nos receba por estes lados da pobreza tropical. Daqui a quatro anos esse país continuará sendo miserável, os tubarões continuarão comendo os surfistas infelizes, o sol continuará de rachar, os livros de auto-ajuda continuarão no topo das listas dos mais vendidos, e nós estaremos no contorcendo de novo de rir por causa do novo óculos que você terá acabado de comprar. Com eles ou sem eles, nós estaremos por aqui.
Até breve, seu mané...
Parece que pedantismo vai mesmo invadir a Alemanha. Não bastasse a penca de filósofos alemães que somos obrigados a ler, ainda teremos que aguentar você daqui a quatro anos, mais insuportável do que nunca, falando alemão e metendo o pau na cultura brasileira. Não sei se meu saco escrotal tem pele o suficiente para suportar o esticamento que advirá da sua chegada no aeroporto. Mas tenha certeza de uma coisa: eu estarei lá. Estaremos todos juntos, tal qual nesse sábado esquisito em que você saiu chorando pelo lado errado do portão. Adauto chorou. Eu não. Estou feliz por você. Você quis isso mais do que qualquer coisa. Invejou doentemente os que lá já estavam. Você conseguiu. Vá tomar no cu por isso. É como saudamos os felizes. Você vai sentir saudade seu merda, ainda que não o admita, fazendo essa pose de superioridade intelectual que deixa você ainda mais com cara de mané. Você vai ser um ponto de saudade em uma terra branca, asséptica e correta como um relógio suíço. Saudade só existe na língua portuguesa, e essa língua vai te fazer tanta falta quanto o gosto de feijão e o cheiro do mar que não vem. Mas seu copo de cerveja está lá imexível, intocável na mesa de qualquer bar que nos receba por estes lados da pobreza tropical. Daqui a quatro anos esse país continuará sendo miserável, os tubarões continuarão comendo os surfistas infelizes, o sol continuará de rachar, os livros de auto-ajuda continuarão no topo das listas dos mais vendidos, e nós estaremos no contorcendo de novo de rir por causa do novo óculos que você terá acabado de comprar. Com eles ou sem eles, nós estaremos por aqui.
Até breve, seu mané...
sexta-feira, outubro 01, 2004
SANCTUS
SANCTUS (ou a essência)
Andando pela rua do Hospício, e absorto em mim mais que no mundo
Cruzo com o Antunes, o da igreja
E diminuímos juntos a distância que só tempo é capaz de tecer
Eu olho para o Antunes e meus olhos abrem os braços
- Olá, Antunes, que bom acaso traz o acaso de te encontrar...
e ao abraçarmos sabemo-nos existindo
(que só existimos para os outros;
para nós mesmos, somos sempre a dúvida de sermos algo que sonha em ser o que nos presumimos).
Digo-lhe isso: “Antunes, que bom saber da tua presença
Pois sabendo da tua, sei da minha
E sei que tenho olhos porque olhas nos meus olhos
E que tenho mãos porque as reputa cansadas
Sou porque és, porque as carnes só podem ser juntas
(e o meu velho amigo sorrindo discorda silenciosamente de mim)
“Porque precisas do que vês? Não basta cogitar a ti mesmo para saber que existes?
Mas dantes, saber que somos invisíveis a qualquer dos olhos
E quando eu vejo teus olhos, não são teus olhos que vejo
Mas o que reputo por teus olhos, o que reputo por mim mesmo”
E diz isso, por não ser ele qualquer Antunes, mas Antunes, o da igreja
E sempre fomos assim: eu como coisa que traz o Mundo para dentro da alma
Ele como coisa que leva à alma para fora do Mundo
Eu vivo para isto que ocorre agora, para o que teus olhos, ó leitor, toma por casual
E que é concreto e amigo da minha pele, e que justifica meus sentidos
Sentidos que usarei até ter gasto todas as sensações e eu não ser mais gente
Mas a memória de um cheiro, de uma saliva, de um corpo que nunca foi o meu
E digo isso ao Antunes: “morrerei na glória de ter sangrado pelo próprio sangue
Mas, você, Antunes, o que é você?”
“Eu vivo para isto que ocorre e que não sentes
Mas que intuis, ainda que te odiando a ti mesmo por intuir
Eu vivo para a alma.
Porque sei do Senhor que desconsidera todas as carnes: as de pedra, as de árvores, as de carne
Eu não posso gozar minha pele, se há antes da pele uma angústia
E que não é minha mas dói em mim, e dói justamente porque há carne
Eu vivo para a alma”
Mas há alma fora da carne?
E se tudo isso que chamamos alma for nossa epiderme
Mas nossa epiderme tocada pela nossa mãe
E se o que dizemos ser espírito for o cabelo desgrenhado pela brisa que vem do mar?
Então saudaremos nossas almas com beijos e abraços e com o sexo
Com qualquer coisa que reputamos como uma mínima descarga elétrica
Que atravessa nossas nucas e se espalha pelos limites tácteis de nossa existência
E terá sido essa a nossa oração.
Andando pela rua do Hospício, e absorto em mim mais que no mundo
Cruzo com o Antunes, o da igreja
E diminuímos juntos a distância que só tempo é capaz de tecer
Eu olho para o Antunes e meus olhos abrem os braços
- Olá, Antunes, que bom acaso traz o acaso de te encontrar...
e ao abraçarmos sabemo-nos existindo
(que só existimos para os outros;
para nós mesmos, somos sempre a dúvida de sermos algo que sonha em ser o que nos presumimos).
Digo-lhe isso: “Antunes, que bom saber da tua presença
Pois sabendo da tua, sei da minha
E sei que tenho olhos porque olhas nos meus olhos
E que tenho mãos porque as reputa cansadas
Sou porque és, porque as carnes só podem ser juntas
(e o meu velho amigo sorrindo discorda silenciosamente de mim)
“Porque precisas do que vês? Não basta cogitar a ti mesmo para saber que existes?
Mas dantes, saber que somos invisíveis a qualquer dos olhos
E quando eu vejo teus olhos, não são teus olhos que vejo
Mas o que reputo por teus olhos, o que reputo por mim mesmo”
E diz isso, por não ser ele qualquer Antunes, mas Antunes, o da igreja
E sempre fomos assim: eu como coisa que traz o Mundo para dentro da alma
Ele como coisa que leva à alma para fora do Mundo
Eu vivo para isto que ocorre agora, para o que teus olhos, ó leitor, toma por casual
E que é concreto e amigo da minha pele, e que justifica meus sentidos
Sentidos que usarei até ter gasto todas as sensações e eu não ser mais gente
Mas a memória de um cheiro, de uma saliva, de um corpo que nunca foi o meu
E digo isso ao Antunes: “morrerei na glória de ter sangrado pelo próprio sangue
Mas, você, Antunes, o que é você?”
“Eu vivo para isto que ocorre e que não sentes
Mas que intuis, ainda que te odiando a ti mesmo por intuir
Eu vivo para a alma.
Porque sei do Senhor que desconsidera todas as carnes: as de pedra, as de árvores, as de carne
Eu não posso gozar minha pele, se há antes da pele uma angústia
E que não é minha mas dói em mim, e dói justamente porque há carne
Eu vivo para a alma”
Mas há alma fora da carne?
E se tudo isso que chamamos alma for nossa epiderme
Mas nossa epiderme tocada pela nossa mãe
E se o que dizemos ser espírito for o cabelo desgrenhado pela brisa que vem do mar?
Então saudaremos nossas almas com beijos e abraços e com o sexo
Com qualquer coisa que reputamos como uma mínima descarga elétrica
Que atravessa nossas nucas e se espalha pelos limites tácteis de nossa existência
E terá sido essa a nossa oração.
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