O Rio
Eu, que sou tudo isso para mim e nada disso para o mundo
Tenho tocado com meus dedos o que milhares de dedos tocaram antes
Tenho apoiado os meus cotovelos na mesma superfície regular que suportou os cotovelos do bancário da esquina
Tenho pisado com meus pés quilômetros de terra domada pelos que me precederam
Eu, sempre esse sorriso presumido, esse abraço aguardado, essa presença intuída
Sempre o mesmo, mesmo que sempre para olhos estranhos
Sempre aquele que não precisa de verbos ou adjetivos
Sempre o captado por um olhar furtivo pelo canto do olho
Tenho honrado meus antepassados ao amarrar os cadarços do sapato
Tenho recebido menções por fazer sempre as três refeições
Tenho engrandecido o meu espírito ao contribuir com o sistema previdenciário
(Ao passar pela mesma rua em que sempre passo, sinto que alguém me saúda
Sou saudado mais pelo gesto do que pelo homem estranho do canto da rua
Que nunca me viu, mas pensou ter-me visto sempre
E lhe sou familiar porque existo, porque falo, porque sou
Eu, que estou multiplicado no sorriso presumido, no abraço aguardado, na presença intuída
Cujos olhos são olhos e nada mais, cuja pele não é porcelana mas carne que perece
Cujos sonhos são roubados daqueles que sonharam antes de mim:
quedo homenageado pelo ato de ser apenas mais um)
Eu, que sou nada disso para mim e tudo isso para o mundo: Mais um...
Nem um Sartre a descobrir que é liberto porque é
Nem um Ford a imaginar novas formas de diminuir o mundo para nossas pernas
Nem um Judas a causar chagas em Deus e fazer isso simplesmente como quem beija...
Nem mesmo nada a se imaginar nada de tudo e por isso mesmo o fim de todas as coisas
Não, nem mesmo isso...