sexta-feira, outubro 01, 2004

SANCTUS

SANCTUS (ou a essência)



Andando pela rua do Hospício, e absorto em mim mais que no mundo
Cruzo com o Antunes, o da igreja
E diminuímos juntos a distância que só tempo é capaz de tecer
Eu olho para o Antunes e meus olhos abrem os braços
- Olá, Antunes, que bom acaso traz o acaso de te encontrar...
e ao abraçarmos sabemo-nos existindo
(que só existimos para os outros;
para nós mesmos, somos sempre a dúvida de sermos algo que sonha em ser o que nos presumimos).

Digo-lhe isso: “Antunes, que bom saber da tua presença
Pois sabendo da tua, sei da minha
E sei que tenho olhos porque olhas nos meus olhos
E que tenho mãos porque as reputa cansadas
Sou porque és, porque as carnes só podem ser juntas
(e o meu velho amigo sorrindo discorda silenciosamente de mim)

“Porque precisas do que vês? Não basta cogitar a ti mesmo para saber que existes?
Mas dantes, saber que somos invisíveis a qualquer dos olhos
E quando eu vejo teus olhos, não são teus olhos que vejo
Mas o que reputo por teus olhos, o que reputo por mim mesmo”

E diz isso, por não ser ele qualquer Antunes, mas Antunes, o da igreja
E sempre fomos assim: eu como coisa que traz o Mundo para dentro da alma
Ele como coisa que leva à alma para fora do Mundo

Eu vivo para isto que ocorre agora, para o que teus olhos, ó leitor, toma por casual
E que é concreto e amigo da minha pele, e que justifica meus sentidos
Sentidos que usarei até ter gasto todas as sensações e eu não ser mais gente
Mas a memória de um cheiro, de uma saliva, de um corpo que nunca foi o meu

E digo isso ao Antunes: “morrerei na glória de ter sangrado pelo próprio sangue
Mas, você, Antunes, o que é você?”

“Eu vivo para isto que ocorre e que não sentes
Mas que intuis, ainda que te odiando a ti mesmo por intuir
Eu vivo para a alma.
Porque sei do Senhor que desconsidera todas as carnes: as de pedra, as de árvores, as de carne
Eu não posso gozar minha pele, se há antes da pele uma angústia
E que não é minha mas dói em mim, e dói justamente porque há carne

Eu vivo para a alma”

Mas há alma fora da carne?
E se tudo isso que chamamos alma for nossa epiderme
Mas nossa epiderme tocada pela nossa mãe
E se o que dizemos ser espírito for o cabelo desgrenhado pela brisa que vem do mar?

Então saudaremos nossas almas com beijos e abraços e com o sexo
Com qualquer coisa que reputamos como uma mínima descarga elétrica
Que atravessa nossas nucas e se espalha pelos limites tácteis de nossa existência
E terá sido essa a nossa oração.