quarta-feira, outubro 27, 2004

Shylock

Era apenas um gato para mim; hoje é um espelho. Sou devoto de sua fidelidade canina (ops!) que me acompanhou em momentos de tormenta e de calmaria. Tem gente que até reclama seu dominus. Tola gente. Shylock não pertence a ninguém, nós que pertencemos a ele. E em mim reside a certeza de que, acima de todas as coisas, ele me escolheu como parte inafastável de sua vida. Estaremos juntos por tantas tormentas e calmarias quanto existirem mundo afora. Ninguém nos impede. Nem a calma do vento. Nem a fúria do mar.

Sua ode, meu filho...

Ode a Shylock


Excelentíssimo Senhor da minha concentração
Marquês das roupas estiradas na cama, ou em qualquer lugar mínimo que lhe pareça aconchego
Duque da vista da minha varanda, cuidadosamente colocada por Deus, unicamente para o seu deleite
Sire do Mundo todo que presumimos por todo
Milord
Permita-me dois dedos de meus poemas, para dizer-lhe o que não precisas ouvir:

A tua cauda aponta para a via Láctea, os teus olhos apontam para o que tu queres
És o conquistador terrível das tuas vontades, a polícia desbravadora do que não sabes
O sorriso oculto em Da Vinci, que se equivocou ao pintar uma reles
Quando toda a explicação reside no sorriso que dás e que olhos comuns não percebem

Esticador hábil do próprio corpo, que faz dele a ponte entre o prazer e o deleite
Mestre das próprias unhas, elegantemente dispostas ao ato de apenas dizer-lhes:
“eu as tenho”
e calado mostrar quatro bainhas que, de tão nobres,
faz-te apenas expectar que as aceitem

Cavaleiro do próprio corpo, que não precisas de qualquer outro pra completar o trote
Ser completo em si mesmo, dono do próprio dote
Eu quero cantar-te porque só sei de mim se contigo, porque não és meu amigo mas mi lorde

Eu que nada sou, nem poeta, nem gente, nem nunca serei nobre
Curvo-me ao que não entendo: letra, ouro, corvo e sorte
Curvo-me então aos teus olhos que reclamam a propriedade
Do meu corpo, dos meus bens, de tudo que percebem e colhem
Pois é este o ato maior de Deus: de ser senhor de tudo o quanto se pode

E ainda assim, nesta que é a maior de todas as posses, deitar diante de mim
E ofertar-me. O prazer de ser seu senhor e aplacar minha sede
De não querer ser gente mas este
Mistério indecifrável que tem a mim e eu a ele.