quinta-feira, outubro 21, 2004

Corrupção: Você ainda vai se deparar com uma

Felizes os que não vêem a face da coisa pública. Porque esses herdarão o reino dos céus(nem que subornem São Pedro para entrar)

André e a Quimera


Crio, em minha casa, uma quimera.
Colhida à rua, ainda pequena,
Atraiu-me seus olhos puros
Sua meninice mitológica ainda reticente
reticente como eu me encontro frente a este poema,
tomei-a nos meus braços e fiz-lhe meu canto:

Alegra-me sua pureza quase indecente de verdade tão grega
Essa coisa pequena alheia às circunstâncias do mundo que chamamos moderno
sem qualquer condescência à hierarquia dos justos
Livre dos esquemas e das tramas que nos exigem o dia.

É apenas uma quimera que brinca (ora dorme, ora ri)
E não lhe aturde a estampa jornalística que denuncia a verdade comprada
Ela sequer sabe dos subterfúgios disfarçados de coisa-bela
Das togas, dos ternos, das peles
Humildemente estendidas à passagem do que lhes é maior

Eu a crio assim
(circunscrita à sua infância
essa era maniqueísta que diz: feio, bonito
Bom, mau
Ao passo que a maturidade é a relativização de todas as coisas
E dizemos: não é bem assim
A justiça não é bem assim
A verdade não é bem assim
O homicídio não é bem assim
Deixamos subornar os postulados que um dia nos foram caros
Mas suborno não é bem assim

Salvaguardarei essa minha quimera
Sequer lhe contarei meus próprios pecados
Há de doer em mim a solidão da penitência subjetiva, do chicote imaginário
mas não lhe contarei o meu maior erro:
o pecado de ver e achar normal,
ver a normalidade normalmente normatizada
(e restar calado como homem rico que devora com os olhos o pão roubado
e virtualmente o come ainda que de barriga cheia
que seu sabor não vem da matéria mas dantes da própria fome inexistente)

eu findo por achar normal minha admiração contida em recurso viciado
Achar coloquial, o estupro
Cotidiano, o descaso
E eu digo sim, omissivamente. Sim ! ainda que calado.
Ato! ainda que parado
(eu pecarei por simplesmente existir)

Por isso não cedo informações à minha quimera
Que país é esse? Nenhum
Que democracia é essa? Alguma
Quem governa esta terra? Ninguém

Ser-lhe-ia melhor surdez ante tantos sussurros
Ser-lhe-ia melhor o silencio perante a palavra estuprada
Ser-lhe-ia melhor a cegueira diante da imagem glorificada
Ser-lhe-á benéfico o ateísmo na terra dos deuses nomeados.

Qualquer cortina fechada servir-lhe-á de janela
Janela de mim-para-mim, salva-me ! Purifica-me na ignorância ilusória de não ver
Não quero ver esta festa em que se decidem os nossos destinos
Onde tantos favores serão servidos em pratos de bronze
(e eu rezarei ao Deus velho, o Deus do velho testamento
para que o mundo dos probos seja devorado pelas águas impuras do ópio popular)

Mas ó coação irresistível que é meu sobrenome: à festa, eu irei...
A festa é meu fim.
Hoje eu sou o filho
amanhã serei o pai
e por fim, o busto
Morrerei acorrentado às minhas flexibilidades.

Por isso, esse meu ofício: de guardar a pequena quimera em minha casa
E em minha casa fazer-lhe o berço-ilha de tudo que achamos por verdade

Um dia ela crescerá e se tornará o monstro, tal qual nas fábulas gregas
E devorar-me-á, selvagem, com seus olhos de besta
Pondo termo enfim a essa minha existência acorrentada
Eu serei devorado pela coisa pura
E para a coisa pública quedarei como verdade não alcançada.